A seca no Semiárido nordestino, que, de tempos em tempos,
mobiliza as atenções do País, tem duas faces, segundo o professor José Jonas
Duarte da Costa, da Universidade Federal da Paraíba. Uma delas – marcada pela
ausência de chuvas – é a face natural. A outra é a socio-histórica, que ele
considera “muito mais grave e devastadora”.
O professor assegura, que, ao contrário do que muita gente
pensa, a região não tem sido esquecida pelo Estado brasileiro. Volumes
consideráveis de dinheiro são sistematicamente enviados para promover o
desenvolvimento do Semiárido. O número de siglas de projetos e empresas
envolvidos com a questão só aumenta. Entre elas aparecem DNOCS, Codevasf,
CHESF, BNB, Sudene, ProHidro, PAPP, Projeto Sertanejo e outros.
O problema é que o dinheiro não chega a quem mais precisa: é
embolsado pela oligarquia econômica e política local. Para piorar o quadro, os
projetos públicos escolhidos não são adequados para a região.
Costa é doutor em história econômica pela USP e mestre em
economia rural pela Federal da Paraíba. Além de ensinar, atua como pesquisador
visitante do Instituto Nacional do Semiárido (Insa). Na entrevista abaixo, ele
afirma que a região nordestina poderia ter um elevado grau de desenvolvimento
se os projetos fossem adequados e os recursos não fossem embolsados pelas
oligarquias.
O Semiárido enfrentou em 2012 um dramático período de
estiagem. Em recente artigo sobre a região, o senhor atribuiu os problemas a
políticas equivocadas de combate à seca.
Não se trata apenas de equívocos, mas, sobretudo, de
projetos e políticas que serviram a interesses menores, de grupos econômicos
dominantes, de características oligárquicas ou empresariais. Tais grupos sempre
se beneficiaram de modelos economicamente concentradores e socialmente
excludentes. Para mim, essa é a questão chave: os projetos e políticas
públicas, além de equivocados,
obedeceram a interesses privados, minoritários, excludentes.
Isso ocorreu mesmo com a Superintendência de Desenvolvimento
Econômico do Nordeste, a histórica Sudene?
Sim. A exceção foi a atuação da Sudene durante os governos
de Juscelino a Jango. Dirigida por Celso Furtado e um grupo que ele formou, até
o golpe de março de 1964, aquela superintendência seguia a lógica de atrair
investimentos e democratizar o acesso à terra e à água, por meio da reforma
agrária. Depois de Furtado esqueceram a reforma e, consequentemente a
democratização da terra e da água.
Os recursos públicos não chegam à população mais necessitada?
Não chegam. Infelizmente. Numa sociedade desigual como a
nossa, eles beneficiam os mais poderosos em praticamente todos os projetos.
Isso ocorre atualmente?
Estou falando da realidade de hoje. Na Paraíba, o governo
estadual tem feito enorme esforço para garantir o fornecimento de ração aos
agricultores familiares, mas os grandes fazendeiros e empresários se apossaram
do programa e são eles quem, de fato, têm acesso à ração animal. O mesmo tem
acontecido com o programa de distribuição de milho que o governo federal
subsidia: só os produtores com melhores condições obtêm acesso ao programa.
O que seria necessário mudar, na sua avaliação?
No plano político seria preciso quebrar a estrutura de poder
oligárquico que se alimenta da seca. Por mais paradoxal e triste que seja,
ainda é comum assistirmos a políticos profissionais que se beneficiam e tiram
proveito eleitoral da situação caótica. Aparecem como defensores dos flagelados
e oprimidos. Criam logo uma SOS Seca e tornam-se garotos midiáticos, preparando
as bases eleitorais para as próximas eleições, prometendo “vestidos a marias e
roçados a joões”, como dizia a música de Gilberto Gil em 1968.
Como romper esse círculo?
Romper essa estrutura política significa eleger outros
interlocutores para um diálogo franco de construção de alternativas de
convivência com a seca. Não se pode aceitar mais que os políticos locais sejam
os intermediários entre os projetos de enfrentamento da questão e a população
que espera os chamados benefícios. É necessário criar mecanismos de democracia
participativa efetiva, onde o povo organizado participe dos fóruns de decisão e
dirija os processos de execução de políticas públicas. Não é fácil, mas é
preciso fortalecer as organizações populares, os movimentos sociais, setores da
igreja, sindicais.
Essas organizações alternativas também apresentam problemas
e dificuldades.
Existem vícios e problemas na execução dos projetos, mas,
sem dúvida, de longe, com muito menos casos de corrupção, desvio de conduta e
descaminhos de projetos. A experiência da ASA (Articulação do Semiárido) com as construções de cisternas de placas,
cisternas calçadão, barragens subterrâneas, etc, é um exemplo de eficiência. No
plano mais amplo, é preciso montar uma infraestrutura produtiva em função das
condições peculiares da região.
O senhor fala em convivência com a seca. Isso é possível?
Cerca de dois terços das terras do planeta estão em regiões
de clima árido ou semiárido. E em muitos desses lugares as pessoas vivem bem,
muito bem. O nosso semiárido é o que mais tem chuvas no mundo e um dos que
apresentam maiores potencialidades. É preciso deixar claro que o Semiárido não
é só pobreza, miséria e seca. É uma região com dificuldades e desafios, mas com
potencialidades enormes, muitas belezas e riquezas. Conhecemos produtores, em
pleno Cariri paraibano, região das mais secas do Brasil, onde não chove há
praticamente dois anos, que ainda não sentiram o drama da seca. Na realidade
sentiram mais o efeito da dizimação da palma forrageira pela praga da
cochonilha do Carmim do que da seca. Esses agricultores aprenderam a viver em
zona seca, semiárida, com pouca chuva. Vivem com muita dignidade e altivez.
Como conseguem?
No período das chuvas produziram e armazenaram alimentos
para os seus rebanhos – e até agora dispõem de reservas para alguns meses.
Também aprenderam a estocar água para utilizar nos períodos de longas estiagens.
São produtores de agricultura familiar que não deixam a desejar em
produtividade, eficiência e qualidade a nenhum produtor das regiões mais
chuvosas do Brasil. Produtores com média de 20 litros de leite por vaca em
plena seca. Apenas montaram infraestrutura tecnológica adaptada ao semiárido.
Não transplantaram modelos produtivos de outras regiões. Assim como os suíços
se preparam para o rigoroso inverno, com nevascas e gelo que matam tudo em suas
terras, assim como árabes e judeus se preparam para as adversidades climáticas,
os sertanejos sabem se preparar para a vida sob as condições climáticas
próprias dessa parte do Brasil.
O senhor fala em potencialidades da região. Elas não são
exploradas?
Não. E são muitas. Um exemplo: poderíamos exportar para todo
o Brasil energia elétrica a partir da energia solar. Outro exemplo: poderíamos
exportar proteína animal, como se vê em outras áreas semiáridas do mundo, e
fornecer queijos finos de leite de cabra. Temos cerca de 90% do rebanho caprino
nacional, plenamente adaptado ao clima local.
Chama a atenção, no artigo que escreveu, a lista de siglas
de programas para a região.
Lembrar essas siglas é quase lembrar a história do Brasil. O
IFOCS, que virou DNOCS, atuou na perspectiva de uma solução hidráulica para a
seca. Construiu uma infraestrutura de açudes e barragens que deu à região um
razoável suporte hídrico. No entanto, desmentindo o paradigma da solução
hidráulica, nos anos 80, quando o Semiárido já dispunha de todos os mananciais
que dispõe hoje, veio a crise da cotonicultura, que, articulada com a crise
econômica dos anos 80 e as secas, provocou o maior fluxo migratório da
história. Cerca de 5 milhões de sertanejos deixaram os sertões secos do Brasil.
Esse paradigma hidráulico foi abandonado?
Embora desmoralizado, setores políticos hegemônicos ainda
tentam resgatá-lo no Nordeste, certamente para tentar se beneficiar.
E as outra siglas e políticas públicas?
O BNB (Banco do Nordeste do Brasil) tornou-se o maior latifundiário do Nordeste,
pois é credor de uma dívida impagável por parte da grande maioria dos
proprietários de terra da região. Também tem CHESF, Codevasf e os programas de
emergência: Projeto Sertanejo, Reflorestamento com Algaroba e outros. Todos tem
sempre o mesmo objetivo: desenvolver o Semiárido. O problema é que todos se
baseiam em modelos importados, que não levam em conta as as potencialidades da
região.
De que maneira os programas de transferência de renda, como
o Bolsa Família, afetam a região?
O Bolsa Família funciona como política compensatória diante
da incapacidade do Estado para superar a pobreza, o desemprego e a miséria,
características do sistema capitalista, especialmente na sua periferia. Para
uma efetiva distribuição de renda seria necessário alterar o modelo que
privilegia o lucro exacerbado e o acúmulo de capitais. O atual governo, embora
tenha reforçado os programas sociais, não alterou a estrutura espoliativa do
trabalho no Brasil. Não mexeu nos privilégios.
Mas o programa não teve impactos?
O Bolsa Família teve e tem impactos importante na redução
dos índices de fome e miséria nos sertões semiáridos. Ele também propicia uma
circulação monetária que cria uma espiral virtuosa em economias locais, onde
predomina a baixa renda. Nos sertões, além de reduzir a miséria, levou ao
escasseamento da mão de obra, melhorando os padrões salariais para uma parcela
das classes trabalhadoras de rendas baixíssimas. Esse é um impacto perceptível.
Por outro lado, gera um processo que pode se voltar contra a própria classe
trabalhadora, que tende a acomodar-se. Como vivemos um momento de inflexão das
lutas sociais, o Bolsa família que alimenta o trabalhador é o mesmo que o
paralisa na luta por sua emancipação, o domestica politicamente, para a
reprodução da exploração sobre o seu trabalho.
E do ponto de vista político-eleitoral?
Os programas sociais têm reflexos direto na popularidade do
governo. Quem, como eu, viveu a infância e juventude nos sertões nordestinos,
não esquece as cenas de fome e desnutrição, inclusive tendo a morte como
companheira próxima – algo comum nas famílias dos agricultores pobres. Hoje
ainda existe muita fome, miséria, desnutrição, mas não comparáveis ao que havia
naqueles tempos. A grande popularidade do governo se explica porque, embora de um
lado realize os sonhos dos capitalistas que “nunca antes na história desse
país” acumularam tanto, de outro, promete acudir parte dessa população,
historicamente desassistida, ainda despolitizada e que, sob essas condições, só
poderia reagir agradecendo.