Artigo de Fernando Gabeira
O governo disse, após as manifestações, que o grande
problema do Brasil é a intolerância. Discordo: acho que é a corrupção. Milhares
de pessoas que foram às ruas acham o mesmo. A resposta do governo não me
surpreende. É tão previsível que poderia reduzi-la a um programa de computador,
quem sabe uma fórmula matemática. Sempre acusa, nunca erra, nunca se desculpa.
Prefere o papel de vítima da intolerância do que assumir suas responsabilidades
no buraco em que meteu o Brasil.
De fato, a tolerância, essa que o governo usa como cortina
de fumaça, é uma qualidade vital. Bertrand Russel dizia que, além de respeito
aos fatos, é preciso aprender a ouvir coisas que não gostamos de ouvir.
A memória me ajuda a exercitar a tolerância. Quando o
presidente da CUT disse que resistiria com armas na mão ao impeachment de
Dilma, consegui sorrir.
Lembrei-me de um episódio em 1964. Éramos cinco jornalistas
morando num conjugado do 200 da Barata Ribeiro. Um de nós foi buscar as armas
que o Almirante Aragão distribuiria para resistir ao que, na época, era um
verdadeiro golpe.
Aragão comandava os fuzileiros navais, tinha armas
verdadeiras. Quando lançou a ordem de entregar as armas, ela foi se deformando
e chegou lá na porta como um aponte as armas. Pessoinha, José Pessoa, esse era
o seu nome, voltou com olhos arregalados e de mãos vazias.
Dos cinco daquela época, morreram três, sobramos Moacir
Japiassu e eu. Vivo, Pessoinha também riria das armas do presidente da CUT. E
muito mais do desfecho: em vez de armas, o presidente da CUT ofereceu churrasco
e cerveja.
As crises trazem muita ansiedade, sobretudo em nossa época.
Toda hora ir ao computador à espera de algo que você não sabe bem o que é, algo
que impulsione uma saída.
Com as memórias de muitos anos de manifestação de rua, fui
ver de perto, depois assisti com tranquilidade às análises, coberturas de tevê,
enfim todas as possíveis interpretações. Uma das coisas que me pareceram meio
cômicas foi a obsessão com os números. Era uma manifestação oceânica, grande
para qualquer democracia ocidental e mesmo para a Índia. Mas era preciso
esquadrinhar a Avenida Paulista em busca de um número.
Como disse Bertrand Russel, é preciso respeitar os fatos. Os
números devem ser levados em conta, mas não são a única variável. As
manifestações revelaram um foco: o impeachment. E marcaram uma aliança entre os
manifestantes e a Operação Lava-Jato. E se fixaram na rejeição de Dilma, Lula e
o PT.
As coisas ficaram mais claras. E manifestações nunca se
esgotam nelas mesmas. Elas são transmitidas para milhões de pessoas que não
foram às ruas. Por causa disso, independentemente de pequenas diferenças
numéricas, as manifestações produzem um enorme efeito num índice que não para
de crescer: o da rejeição a Dilma.
Agarrados a números como um contador atarefado, muitos não
sentiram a dimensão do protesto, a proeza de unir um movimento nacional em
torno de uma só aspiração. Se isso não tem foco, recomendo levar a lente para
um especialista. Ao contrário das manifestações do século passado, nas de agora
agora são famílias inteiras que vão para as ruas. Não houve ocorrências
policiais ao longo de todo o país. Não havia comícios, mas microfones abertos.
Outro dia, num encontro do PT, um dos oradores pediu a volta
dos black blocks. Onde estão eles que não nos ajudam? Nas vésperas da
manifestação, o presidente da CUT vem com essa história de armas,
transfiguradas em chope e churrasco.
É verdade que surgiram ao longo do Brasil algumas faixas
pedindo intervenção militar. Mas quem acredita mesmo que situação histórica se
resolve num conflito das Forças Armadas com os sindicalistas armados de Vagner
Freitas? É preciso muito chope para considerar esta hipótese.
Manifestações nem sempre têm o condão de resolver sozinhas
as crises. Elas as dramatizam e empurram os atores para assumirem seu papel em
cena. Na verdade, embora a palavra de ordem fosse impeachment, vi mais
esperança no curso da Operação Lava-Jato do que no processo político.
O que ficou claro no domingo é que as multidões não aceitam
sabotagens à Operação Lava-Jato. Esperam que se desdobre, pois veem nela o
elemento mais dinâmico nessa pasmaceira. De um lado um governo que não governa,
apenas tenta sobreviver; de outro a necessidade de abrir uma brecha no impasse
político, premissa para se recuperar a economia.
Impossível não perceber o movimento da multidão: seus
clamores não foram ouvidos pelos políticos, ela se volta para a polícia. E está
funcionando. É algo que funciona, e a própria oposição decidiu se opor. Sei que
esta frase pode parecer arriscada mas é a conclusão que tirei nas ruas: la nave
va.
Artigo de Fernando Gabeira, O Globo
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