sábado, 31 de outubro de 2015

DIANTE DOS OLHOS

Artigo de Marina Silva
Fascina-me o exemplo daqueles que, em todos os tempos, são capazes de sonhar com um mundo sustentado por ideais, dedicar a vida a realizar este sonho, fazer dele a metáfora concreta de elevados valores éticos e de um ideal de fraternidade tão antigo quanto a própria humanidade. Por isso, tem sido difícil, até doloroso, suportar a frequência com que o pesadelo – expresso na palavra distopia – tem habitado o cotidiano e o imaginário de nossa sociedade nos últimos anos.
Algumas distopias são, devemos reconhecer, belas obras de arte. Criticam e alertam, ao modo das profecias, mostrando o lugar terrível onde os erros que cometemos nos levarão, caso insistamos em permanecer neles. Mas fora das artes, a má notícia e o anúncio do desastre não parecem produzir efeito prático.
Quando a distopia se instala e o anunciado se antecipa, a sociedade e seus poderes constituídos parecem não crer no que está diante dos olhos. Fiquei impressionada ao saber de um estudo encomendado em 2009 pelo governo de São Paulo sobre a possibilidade de uma crise hídrica. O relatório tinha linguagem próxima à da ficção científica. Situava-se em 2020 e descrevia uma grave falta de água como continuidade de crises “anteriores”, em 2015 e 2018. A criatividade dos cientistas não me impressionou tanto quanto a insensibilidade de alguns governantes, que não leram ou não acreditaram no que estava escrito.
Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) são claros e os alertas dos cientistas são frequentes. Até o papa Francisco clamou por medidas reais e urgentes contra o aquecimento global. Para quem não dá atenção às palavras, mesmo às mais qualificadas do ponto de vista ético ou técnico, aí estão os fatos em imagens chocantes veiculadas todos os dias.
É impressionante ver que cerca de um milhão de refugiados pediram asilo na Europa desde 2014, a maioria fugindo da guerra na Síria e Iraque, deixando toda uma vida para trás. E essa é apenas uma parte do sofrimento humano. Segundo a ONU, o número de refugiados do clima já supera com folga o de refugiados da guerra. Um relatório de 2008 anunciava que poderiam chegar a 50 milhões em 2020. Números mais recentes anunciam 40 milhões por ano, pois os eventos climáticos extremos estão ocorrendo com mais frequência.
Sobre algumas catástrofes imprevisíveis, como tsunamis e terremotos, não é possível determinar que sejam intensificadas pelas mudanças climáticas. Mas outro processo mais lento, igualmente devastador, que gera extremos de desertificação, inundações e furacões, pode forçar deslocamentos humanos em massa. Para estes há previsibilidade e um elevado grau de certeza de serem provocados pelo aquecimento global.
O que os governos esperam além de palavras e fatos? Muitos cobram da ciência uma certeza que não existe em nenhum campo do conhecimento. O cientista Antonio Nobre tem reclamado com razão. É dele a comparação “ninguém faz uma apólice de seguro por ter certeza de que vai sofrer um acidente, basta que haja a possibilidade”. Os estudos mostram mais que um risco, mas uma realidade já visível.
As transformações estão se intensificando e muitas regiões deixarão de ser habitáveis. A ONU estima que, se a elevação do nível dos oceanos tornar-se realidade, poderemos ter entre 250 milhões e um bilhão de refugiados ambientais até 2050. Se a temperatura do planeta aumentar além do limite de 2º C, os ciclos bioquímicos que dão suporte à vida na Terra podem ficar comprometidos. E muitos cientistas dizem que manter-se nesse limite já é um sonho perdido.
Não chega de distopia? Se ainda não dá para sonhar, ao menos podemos ter esperança de que a humanidade esteja sentindo a urgência e o perigo. Existe um sinal de alerta, que tenta acordar a civilização de um pesadelo de consumismo e violência. Pode ainda existir, sob a balbúrdia do trânsito nas cidades, um silencioso compromisso ético com as fontes naturais da vida.
Creio que já temos consciência do quanto é importante a Conferência do Clima da ONU, marcada para dezembro em Paris. Mais de 190 países vão se reunir naquela que talvez seja a última chance para buscar um acordo capaz de reduzir a emissão de carbono ao ponto de evitar consequências mais graves.
Mas os governos ainda dormem. Os compromissos nacionais de redução anunciados até agora pelos principais emissores de carbono ainda estão longe de evitar que cheguemos ao chamado ponto de não-retorno.
No Brasil, nossas maiores fontes de emissão vêm do desmatamento e da geração de energia. Conseguimos grandes resultados na redução do desmatamento desde a implantação do PPCDAM (Programa de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia), em 2004, mas dados divulgados pelo Imazon indicam a retomada do aumento do desmatamento, o que deverá ser confirmado pelo governo até o fim do ano. No Plano Nacional sobre Mudança do Clima, apresentado em 2008, previa-se eliminar a perda líquida de cobertura florestal no Brasil até 2015, mas isso está longe de acontecer. Em visita à Alemanha, em agosto, a presidente Dilma anunciou a meta de zerar o desmatamento “ilegal” na Amazônia até 2030, uma incrível confissão da incapacidade de fazer cumprir a lei no país.
Se não consegue controlar a perda, como reorientar o desenvolvimento econômico e social para novos ganhos – e de outra natureza -, fazendo a transição para uma economia de baixo carbono? Como levar a algum futuro o país da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal, da maior biodiversidade do planeta, o país do sol, da água limpa e do solo fértil, do gigante pela própria natureza?
O Brasil é, de fato, grande. E é importante na superação da crise planetária. Mas terá que agigantar-se em sua renovação ética, erguer-se desde suas raízes históricas e culturais, reconhecer e valorizar sua natureza e os diversos povos que formam seu povo. Só então poderá acordar. E, acordado, sonhar um sonho sustentável.
Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 29/10/15 
Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário