Artigo de Marina Silva
Fascina-me o exemplo daqueles que, em todos os tempos, são
capazes de sonhar com um mundo sustentado por ideais, dedicar a vida a realizar
este sonho, fazer dele a metáfora concreta de elevados valores éticos e de um
ideal de fraternidade tão antigo quanto a própria humanidade. Por isso, tem
sido difícil, até doloroso, suportar a frequência com que o pesadelo – expresso
na palavra distopia – tem habitado o cotidiano e o imaginário de nossa
sociedade nos últimos anos.
Algumas distopias são, devemos reconhecer, belas obras de
arte. Criticam e alertam, ao modo das profecias, mostrando o lugar terrível
onde os erros que cometemos nos levarão, caso insistamos em permanecer neles.
Mas fora das artes, a má notícia e o anúncio do desastre não parecem produzir
efeito prático.
Quando a distopia se instala e o anunciado se antecipa, a
sociedade e seus poderes constituídos parecem não crer no que está diante dos
olhos. Fiquei impressionada ao saber de um estudo encomendado em 2009 pelo
governo de São Paulo sobre a possibilidade de uma crise hídrica. O relatório
tinha linguagem próxima à da ficção científica. Situava-se em 2020 e descrevia
uma grave falta de água como continuidade de crises “anteriores”, em 2015 e
2018. A criatividade dos cientistas não me impressionou tanto quanto a
insensibilidade de alguns governantes, que não leram ou não acreditaram no que
estava escrito.
Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas) são claros e os alertas dos cientistas são frequentes. Até
o papa Francisco clamou por medidas reais e urgentes contra o aquecimento
global. Para quem não dá atenção às palavras, mesmo às mais qualificadas do
ponto de vista ético ou técnico, aí estão os fatos em imagens chocantes
veiculadas todos os dias.
É impressionante ver que cerca de um milhão de refugiados
pediram asilo na Europa desde 2014, a maioria fugindo da guerra na Síria e
Iraque, deixando toda uma vida para trás. E essa é apenas uma parte do
sofrimento humano. Segundo a ONU, o número de refugiados do clima já supera com
folga o de refugiados da guerra. Um relatório de 2008 anunciava que poderiam
chegar a 50 milhões em 2020. Números mais recentes anunciam 40 milhões por ano,
pois os eventos climáticos extremos estão ocorrendo com mais frequência.
Sobre algumas catástrofes imprevisíveis, como tsunamis e
terremotos, não é possível determinar que sejam intensificadas pelas mudanças
climáticas. Mas outro processo mais lento, igualmente devastador, que gera
extremos de desertificação, inundações e furacões, pode forçar deslocamentos
humanos em massa. Para estes há previsibilidade e um elevado grau de certeza de
serem provocados pelo aquecimento global.
O que os governos esperam além de palavras e fatos? Muitos
cobram da ciência uma certeza que não existe em nenhum campo do conhecimento. O
cientista Antonio Nobre tem reclamado com razão. É dele a comparação “ninguém
faz uma apólice de seguro por ter certeza de que vai sofrer um acidente, basta
que haja a possibilidade”. Os estudos mostram mais que um risco, mas uma
realidade já visível.
As transformações estão se intensificando e muitas regiões
deixarão de ser habitáveis. A ONU estima que, se a elevação do nível dos
oceanos tornar-se realidade, poderemos ter entre 250 milhões e um bilhão de
refugiados ambientais até 2050. Se a temperatura do planeta aumentar além do
limite de 2º C, os ciclos bioquímicos que dão suporte à vida na Terra podem
ficar comprometidos. E muitos cientistas dizem que manter-se nesse limite já é
um sonho perdido.
Não chega de distopia? Se ainda não dá para sonhar, ao menos
podemos ter esperança de que a humanidade esteja sentindo a urgência e o
perigo. Existe um sinal de alerta, que tenta acordar a civilização de um
pesadelo de consumismo e violência. Pode ainda existir, sob a balbúrdia do
trânsito nas cidades, um silencioso compromisso ético com as fontes naturais da
vida.
Creio que já temos consciência do quanto é importante a
Conferência do Clima da ONU, marcada para dezembro em Paris. Mais de 190 países
vão se reunir naquela que talvez seja a última chance para buscar um acordo
capaz de reduzir a emissão de carbono ao ponto de evitar consequências mais
graves.
Mas os governos ainda dormem. Os compromissos nacionais de
redução anunciados até agora pelos principais emissores de carbono ainda estão
longe de evitar que cheguemos ao chamado ponto de não-retorno.
No Brasil, nossas maiores fontes de emissão vêm do
desmatamento e da geração de energia. Conseguimos grandes resultados na redução
do desmatamento desde a implantação do PPCDAM (Programa de Prevenção e Controle
do Desmatamento da Amazônia), em 2004, mas dados divulgados pelo Imazon indicam
a retomada do aumento do desmatamento, o que deverá ser confirmado pelo governo
até o fim do ano. No Plano Nacional sobre Mudança do Clima, apresentado em
2008, previa-se eliminar a perda líquida de cobertura florestal no Brasil até
2015, mas isso está longe de acontecer. Em visita à Alemanha, em agosto, a
presidente Dilma anunciou a meta de zerar o desmatamento “ilegal” na Amazônia
até 2030, uma incrível confissão da incapacidade de fazer cumprir a lei no
país.
Se não consegue controlar a perda, como reorientar o
desenvolvimento econômico e social para novos ganhos – e de outra natureza -,
fazendo a transição para uma economia de baixo carbono? Como levar a algum
futuro o país da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal, da maior
biodiversidade do planeta, o país do sol, da água limpa e do solo fértil, do
gigante pela própria natureza?
O Brasil é, de fato, grande. E é importante na superação da
crise planetária. Mas terá que agigantar-se em sua renovação ética, erguer-se
desde suas raízes históricas e culturais, reconhecer e valorizar sua natureza e
os diversos povos que formam seu povo. Só então poderá acordar. E, acordado,
sonhar um sonho sustentável.
Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 29/10/15
Nenhum comentário:
Postar um comentário