sábado, 26 de março de 2016

A CADA DIA UMA AGONIA

Artigo de Fernando Gabeira

Pensei que esta seria uma semana de trégua. E é, de certa forma, no plano nacional. Na verdade, o atentado em Bruxelas mostrou a face covarde da guerra. Ao considerá-la assim, uma semana de trégua, lembrei-me de uma grávida que entrevistei num bairro infestado de mosquitos em Aracaju: “Graças a Deus, o que tive foi chikungunya”.
Os fatos da semana passada não me permitiram tratar de escutas telefônicas. Tenho experiência disso. Nas eleições de 98, um repórter ouviu ligação minha e divulgou uma frase em que dizia que uma deputada estadual era suburbana. Isso num contexto sobre implantação de aterros sanitários, que, para mim, deveriam ter um enfoque metropolitano. Reclamei de forma, mas não me detive nisso porque havia algo mais importante a tratar: o conteúdo.
O adversário na época, Eduardo Paes, fez uma grande campanha em torno disso. Vestiram camisetas com a inscrição Sou suburbano com muito amor. Ainda hoje as fotos me fazem rir.
A reação de Dilma e seus defensores foi dissociar a forma do conteúdo e discutir só aquela. A tentativa de explicar o diálogo gravado foi ridícula, segundo o New York Times. Patética para outros, que observam o fluxo dos últimos acontecimentos. No caso, não se trata de um grampo, mas de levantar o sigilo de um processo. Moro investigava Lula e o conjunto das gravações indicava a busca de um ministério para escapar do processo. O último áudio apenas foi uma espécie de CQD.
A Lava Jato é, para mim, a maior e mais bem-sucedida operação realizada pela polícia brasileira. Sua atuação é espetacular, mas, se comparamos com o futebol, é possível jogar uma partida magnífica e ainda assim cometer algumas faltas.
No meu entender, elas estão no levantamento do sigilo de áudios que tratam de assuntos pessoais, sem importância real no processo. Eu deparo com esse problema no trabalho cotidiano. Outro dia entrevistei uma cozinheira e ela disse que se casou com o primo por falta de alternativa. Minutos depois me procurou para que apagasse esse trecho da entrevista. Atendi imediatamente. Que interesse teria isso para a história que estava para contar? Nenhum.
O que é irrelevante para o público pode ter enorme repercussão na vida da pessoa. Uma frase mal colocada, absolutamente inócua para o espectador, pode desatar inúmeros dramas familiares, suspeitas, rancores.
Com escritores, juristas, tanta gente de talento defendendo Dilma, ninguém trata do conteúdo do processo levado por Moro, o que, na verdade, interessa mais ao povo. Falam em defesa da democracia, mas ignoram o mensalão, o escândalo na Petrobrás, dois ataques violentos à própria democracia.
Fui deputado alguns anos e me sinto enganado por ter de discutir com parlamentares que foram comprados pelo governo. Não há debate real. As posições foram pagas no guichê do palácio. Para mim, isso é a real negação do processo democrático. E os dados estão aí: a Petrobrás foi arrasada, apenas em 2015 teve um prejuízo de R$ 43,8 bilhões; só a Operação Lava Jato conseguiu bloquear R$ 800 milhões no exterior.
Que tipo de democracia é esta em que você compete com campanhas milionárias sustentadas com grana roubada de empresas estatais, via propinas das empreiteiras?
As delações premiadas da Andrade Gutierrez e de Marcelo Odebrecht vão demonstrar tudo isso. No caso de Odebrecht, é preciso ver ainda o que tem a falar, porque sua resistência acabou provocando um avanço da Lava Jato sobre os segredos mais guardados da empresa.
Outra discussão que reservei para a semana de trégua: a condução de Lula. Tenho amigos que a criticam, na verdade, tenho amigos que até são contra o impeachment. A Lava Jato, a esta altura, fez 130 conduções coercitivas. Mas Lula estava disposto a depor, dizem. E os outros, se chamados, também não estariam dispostos? O que determina a medida é análise dos fatos, a lógica da investigação.
Outros lembram: Lula é um símbolo. Respondo que a lei vale para todos. Está escrito na Constituição. Teríamos de redigir a emenda: a lei vale para todos, menos para os símbolos.
Aliás, o termo símbolo é muito vago. Eventualmente um homem desconhecido pode se tornar símbolo de algo. O pedreiro Amarildo transformou-se num símbolo. Um jovem negro assassinado os EUA vira símbolo do conflito racial.
É surpreendente ver como Lula se transformou, na realidade, num líder conservador: a esperança dos corruptos de melar a Operação Lava Jato. Deixando de lado o machismo, que não é novidade, suas falas gravadas mostram um personagem típico: sabe com quem está falando? Seu ataque à autonomia da Polícia Federal é simplesmente reacionário. Ainda mais, articulado com frases em que condena a busca de autonomia em outros setores. “Só Dilma não consegue governar, não tem autonomia”, diz ele.
Uma visão realmente política não culpa a oposição pela imobilidade do governo. Seria o mesmo que Lenin, derrotado num bar do Quartier Latin, afirmar que a revolução fracassou por causa dos mencheviques.
Dilma não consegue governar, concordo com Lula. Mas o problema não está na oposição, está nela. Lula reconhece isso nos seus discursos, pedindo que Dilma sorria pelo menos algumas vezes. Acho um apelo inútil, como os que encontramos em algumas lojas: sorria, você está sendo fotografado.
Se Lula reconhece que Dilma não é capaz de presidir, terá de reconhecer também que errou ao lançá-la. E toda essa imensa máquina petista teria de compreender que não se inventa um quadro político, ele se faz na história cotidiana, ao longo de mandatos, no fascinante jogo político, um jogo tedioso para quem não gosta dele.
Isso são reflexões de uma semana de trégua. Não há futuro para o governo. Toda a sua energia se consome na defesa do impeachment, no medo da Lava Jato. Cada dia que um projeto fracassado consegue sobreviver é mais um dia em que o Brasil afunda. Isso parece não ter nenhuma importância para eles. Lamento.
Artigo de Fernando Gabeira, publicado no Estadão, 25/03/2016
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