Editorial O Globo
O comparecimento da presidente afastada, Dilma Rousseff, ao
Senado poderia reservar alguma surpresa. Chegou-se a prever que o discurso de
Dilma entraria para a História. Mas a decisão, até corajosa, da ré, de ir ao
Congresso se defender foi frustrante. Viu-se apenas a enfadonha repetição de
velhos argumentos. O pronunciamento da presidente afastada repetiu a ideia, sem
pé nem cabeça, de que é vítima de um “golpe parlamentar”, desfechado por uma
conspiração fantasiosa das elites, sob o “silêncio cúmplice da mídia”.
Ora, agride-se o mensageiro pelo teor da mensagem, o que vem
acontecendo, por parte de lulopetistas, desde o mensalão, noticiado com
destaque, como teria de ser, pelo jornalismo profissional. Estranho foi o fato
de a denúncia do “golpe” ser feita no Congresso, em pleno funcionamento, e na
presença do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski,
responsável por conduzir o julgamento propriamente dito. STF este ao qual a
defesa da presidente recorreu algumas vezes, o que jamais seria possível num
verdadeiro golpe.
Aliás, sequer haveria STF num golpe para valer, não de
fantasia. Na verdade, tudo transcorre dentro do estado democrático de direito,
garantida toda a liberdade de defesa, substituindo-se, pelo Congresso, uma
presidente que cometeu crimes de responsabilidade pelo seu vice, eleito em
chapa única pelos mesmos 54 milhões de votos. Simples assim. Esta versão
delirante do processo de impeachment visa a encobrir o desrespeito, comprovado
de forma sólida pela acusação, à Constituição e à Lei de Responsabilidade, pela
presidente Dilma, em 2015, ao continuar com as “pedaladas”, e na emissão de
decretos de liberação de despesas, sem a aprovação do Congresso.
O período abordado pelo processo é apenas o primeiro ano do
segundo governo de Dilma, porque assim foi decidido pelo então presidente da
Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ao aceitar o pedido de impedimento, em
dezembro desse ano. Mas a manobra de fazer com que instituições financeiras
oficiais (Banco do Brasil, Caixa, BNDES) e até o FGTS arcassem com despesas do
Tesouro, em operações disfarçadas, ilegais, de financiamento à União, havia
começado a ser feita em maior escala desde o final do segundo governo Lula.
O truque é atrasar repasses do Tesouro a essas instituições,
feitos para ressarci-las pela equalização de taxas de juros, por exemplo, em
financiamentos agrícolas, industriais etc. Também houve atrasos no Bolsa
Família. Se essas operações, as “pedaladas”, serviram para mascarar rombos no
Tesouro, a emissão de decretos de gastos sem o aval do Congresso — um ato
monárquico — se baseou na filosofia da política do “novo marco macroeconômico”,
a favor de mais gastos, a qualquer custo, na vã tentativa de resgatar a
economia da recessão.
Não deu certo, como se viu. Na conhecida visão de Dilma, a
crise surgiu da conjuntura internacional. Na sua versão dos fatos não existiu o
estelionato eleitoral praticado por ela e aliados na campanha de 2014, jogando
para debaixo do tapete a gravidade da situação fiscal e mantendo a inflação artificialmente
baixa, por meio do condenável represamento de tarifas. Tudo sob a maquiagem da
“contabilidade criativa”.
A presidente afastada desafiou a prudência ao misturar
momentos históricos muito diversos, comparando-se a Getúlio Vargas, a Juscelino
Kubitschek e a João Goulart. Mas vale tudo para insistir na farsa do “golpe”.
Também é insensata a tentativa da presidente afastada de colocar no mesmo plano
o julgamento pelo qual passou na Justiça Militar, na ditadura, com o atual, em
tramitação dentro de todas as normas legais.
Dilma repetiu que Eduardo Cunha, ex-aliado do PT, foi
peça-chave no impeachment, ao se vingar dela supostamente por ter se recusado a
levar o PT a ajudá-lo no Conselho de Ética. Mas o impeachment só chegou a este
ponto porque até agora a grande maioria de deputados e senadores tem concordado
com as acusações. Sozinho, Cunha nada conseguiria. A presidente afastada perdeu
grande oportunidade de fazer uma defesa efetiva. Só repetiu o discurso da sua
bancada, mais voltado para um futuro sem ela no Planalto.
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