Artigo de Fernando Gabeira
Não precisamos de cangurus, mas sim de encanadores. A frase
da chefe da delegação australiana na Olimpíada do Rio é mais do que uma tirada
pragmática. Ela nos leva a pensar no humor. Quando prometeu os cangurus, diante
das reclamações sobre problemas hidráulicos, Eduardo Paes estava fazendo humor.
E, ao contrário do que ele costuma dizer, não é um humor carioca, apenas humor.
Na verdade, não sei se existe um humor tipicamente carioca. Um dos maiores
humoristas de todos os tempos, o carioca Millôr Fernandes era universal na
maioria dos seus textos e pode ser incluído em qualquer boa seleção planetária.
Talvez exista um humor judeu, classificado, organizado em
antologias, com traços marcantes, como a autoironia de Woody Allen. Mas ainda
assim é um esforço classificatório. No livro “O ato da criação”, Arthur
Koestler descreve a dinâmica do humor e, de um modo geral, o atribui a um tipo
de associação que expressa o encontro súbito de dois quadros do pensamento, uma
centelha criativa que faz rir. Paes associou rapidamente um fato do mundo
material, o entupimento das pias, para outro do mundo afetivo, os cangurus tão
presentes no cenário australiano. A resposta australiana recolocou o quadro
real da demanda.
Se examinarmos o quadro clássico da dinâmica do humor, ele
apenas introduziu uma centelha criativa, com o propósito de fazer rir. No
entanto, carioca ou judeu, o humor está sujeito a uma condição universal: tem
ou não tem graça? É difícil aceitar a tese de um humor carioca, sempre que o
prefeito do Rio diz uma frase infeliz. Existe um estado de espírito mais
descontraído talvez. Mas ele também está sujeito ao julgamento do outro.
Se as frases de Paes expressam um típico humor carioca, era
de se esperar que os cariocas fossem discretamente evitados por outros povos:
lá vêm aqueles caras, com aquelas piadas sem graça. E não é isso o que acontece
nas relações entre eles e o mundo. É compreensível que pessoas modestas
atribuam seus talentos à sociedade em que trabalham, que socializem a
celebração de suas conquistas. Mas torna-se um pouco difícil atribuir frases
das quais ele próprio se arrepende a um traço da sua própria cultura. Como os
cariocas, por serem cariocas, estivessem condenados culturalmente a dizer
coisas sem graça, nas circunstâncias mais sérias. A resposta da australiana,
Kitty Chiller — “precisamos de encanadores” — jogou Paes na realidade e foram
feitos avanços nas reparações. Ministros de Brasília andaram dizendo que isso
acontece mesmo com prédios novos. É a inversão do senso comum. Seria como dizer:
meu carro é novo, por isso não sai da oficina.
O diálogo Paes-Chiller me jogou também numa outra dimensão
da realidade. Se uma obra que custou R$ 2,9 bilhões, inaugurada com exposição
internacional, foi entregue assim, o que acontece com as outras ao longo do
Brasil, escondidas das câmeras, anônimas? Cobrindo uma enchente num bairro
popular de São Gonçalo, a moradora me convidou para entrar em sua casa e ver o
resultado de uma recente obra de saneamento. Simplesmente os canos devolviam
esgoto para dentro de casa. Naquele momento, senti muito que ela fosse obrigada
a viver naquelas circunstâncias desagradáveis. Era apenas uma velha senhora de
São Gonçalo. O que vemos hoje atrela aquele destino individual à própria imagem
do Brasil.
As reportagens mais críticas e dolorosas referem-se sempre
aos graves problemas de saneamento. Uma atleta americana postou para seus
seguidores: vou remar na merda por vocês. Num sentido mais amplo, a chefe da
delegação australiana falou por todo o Brasil: precisamos de encanadores.
Impossível esconder de uma superexposição internacional o fato de que ainda não
resolvemos no XXI o problema que alguns países resolveram no século XIX, como o
saneamento básico. Não é preciso ir aos bairros mais pobres para constatar essa
realidade. As lagoas são um termômetro. Todas, e especialmente a Baía de
Guanabara, são poluídas e decadentes. A opção de realizar a Vila Olímpica na
Barra consagra um tipo de crescimento que segue o ritmo do próprio comércio
imobiliário. Ao fugir das grandes concentrações, a expansão impõe ao governo
custos muito altos para instalar a infraestrutura. A frase da australiana Kitty
Chiller não é todo estranha à Barra de Tijuca de hoje.
Mas, certamente, ao apontar o crescimento para a região, ela
pode se tornar profética: precisamos de encanadores. De uma certa forma, a
Lava-Jato nos ajudou nisso. Grandes empreiteiras como a Odebrecht não terão
condições de repetir seus métodos. E não poderão substituir o planejamento pela
lista das obras que querem construir. O colapso dessas grandes empresas talvez
abra caminho para se enfrentar com mais eficácia a tarefa do saneamento.
Se isso acontecer será também um legado da Olimpíada,
teremos encanadores e os canos que ainda nos faltam.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 31/07/2016
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