Artigo de Fernando Gabeira
Apesar de tudo o que está acontecendo no Brasil, o que vem
dos Estados Unidos preocupa. Na primeira coluna que escrevi, lamentava que nos
dias atuais as versões valem mais do que as evidências. Ao lançar a ideia de
uma realidade alternativa, que despreza as evidências, Trump passa a ser temido
pelos próprios americanos. E se preferirem as evidências em vez de Trump?
Seriam obrigados a se render à versão oficial dos fatos?
Não sei se pelo cansaço da viagem — percorri dois mil
quilômetros para visitar a área de emergência da febre amarela —, tenho uma
sensação de que estamos sofrendo um ataque do passado. Muito do que se supunha
perdido no século passado volta hoje com força. É difícil seguir todos os
movimentos de Trump porque, além da volta do passado, o presente nos ataca com
surpresas assustadoras, como, por exemplo, a morte de Teori Zavascki, relator
da Lava-Jato.
No meio de toda essa confusão, ainda tentei pensar na morte
de uma pessoa. Como o fiz depois do desastre com o avião de Eduardo Campos.
Sabia que iria haver uma grande discussão: acidente ou atentado? Mas intuía
também que isso só se sabe ao cabo de uma longa investigação. Pra que opinar?
Sabia também que haveria uma grande discussão sobre o
destino da Lava-Jato, e que dela iria participar. Mas no momento em que soube
da morte de Teori estava consultando o telefone no carro. Passávamos por uma
rua de Teófilo Otoni, e a vida fervilhava lá fora.
Estranho, pensei: tenho um morto na palma da mão, e o mundo
continua a girar no seu ritmo louco. É assim com cada morte. Lembrei-me de uma
carta da escritora Rachel Carson, autora do clássico “Primavera silenciosa”. O
contexto era uma correspondência de amigas íntimas. Rachel, que já estava
doente, talvez antevendo a morte, descreve a manhã em que viu centenas de
borboletas coloridas passando na sua frente. E pensou: que bom seria vê-las de
novo, mas lembrou, rapidamente, que isso seria impossível, pois o ciclo de vida
delas é muito curto. A brevidade e a beleza do ciclo da borboleta são também
estímulo para pensar a vida humana.
As coisas não estão nada bem. Macacos e gente morrendo de
febre amarela, desemprego, presídios em chamas, decapitações, e agora
insegurança num front decisivo: a Lava-Jato. Ninguém escolheria este cenário.
Mas é o tempo que nos é dado para viver. Uma noite depois da morte de Teori,
contemplei da minha mesa um jantar desses de 20 pessoas, várias gerações, e
pensei: pelo menos sabemos algo que talvez as borboletas não saibam: tudo
continua depois da nossa morte.
Uma semana depois, visitei o aeroporto de Paraty, Angra e
Ubatuba. Não para responder à pergunta que a investigação responderá:
intencional ou por acaso? Apenas para constatar a força do acaso numa região
que chove muito, com aeroportos modestos e a imensa Serra do Mar.
Como não posso responder à pergunta, limito-me a voltar o
foco para a Lava-Jato. Ela precisa prosseguir porque é importante não só para o
Brasil como para pelo menos nove países no continente. Prosseguir significa, no
momento, homologar as delações dos 77 funcionários da Odebrecht. E logo em
seguida pensar num relator. Li que se pensava num sorteio entre os ministros.
Acho a única saída que pode ameaçar a Lava-Jato. Depois de vitoriosa, o destino
da operação ficaria sujeito a um processo tão aleatório como uma disputa por
pênaltis.
Foi curioso, nas duas últimas semanas, cruzar cidades
quentes, Santo Antônio de Pádua, 44 graus, Paraty, 45 graus, e ouvir pelo rádio
que Trump mandou apagar os dados do aquecimento global no site da Casa Branca.
O calor desses não é nada na escala do tempo. Mas o aquecimento global já foi
demonstrado por centenas de cientistas, centenas de jornalistas documentaram
seus efeitos no planeta.
É uma realidade paralela brava. Dessas que ignoram que os
outros vão continuar e encaram sua própria morte como o fim do mundo. Mas ao
mesmo tempo é uma realidade devastadora, pois afasta os EUA do esforço
planetário para reduzir as emissões dos gases que produzem o aquecimento. Entre
secas e eventos extremos, não há outro caminho senão documentar a realidade
real: por mais imperfeita, tem a grande vantagem de existir.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 28/01/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário