Caso seja confirmada pelo Congresso Nacional, a extinção do
foro privilegiado vai transferir do Supremo Tribunal Federal (STF) para outras
instâncias da Justiça uma centena de acusações criminais contra mais da metade
do Senado. Nunca tantos integrantes da Casa estiverem sob suspeita. Dos 81
senadores, pelo menos 44 respondem a inquéritos (investigações preliminares que
podem resultar em processo) ou ações penais (processos que podem terminar em
condenação). Dessa bancada, 41 participaram da votação, em primeiro turno, da
proposta de emenda à Constituição (PEC 10/2013) que acaba com a prerrogativa de
parlamentares e milhares de outras autoridades de serem julgadas por tribunais
específicos, como o Supremo.
O texto prevê a manutenção do foro apenas para os
presidentes da Câmara, do Senado e da República para crimes relacionados ao
mandato. A proposta foi aprovada, às pressas, no início da noite de
quarta-feira (26), após um repentino acordo entre as lideranças partidárias na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), pela manhã.
Todos os 75 senadores presentes em plenário votaram a favor
da mudança. Entre eles, Ivo Cassol (PP-RO), condenado a quase cinco anos de
prisão pelo STF, em 2013, mas que ainda se mantém em liberdade e no exercício
do mandato graças a um recurso ainda pendente de análise no tribunal. A
Procuradoria-Geral da República já pediu que ele comece a cumprir a pena. Mas
os ministros interromperam o julgamento do recurso no ano passado e não
marcaram data para retomar o caso. Cassol entrou recentemente para a lista da
Lava Jato.
Oito réus
A PEC, de autoria de Alvaro Dias (PV-PR), precisa passar por
nova votação no Senado antes de seguir para a Câmara. No segundo turno, mais
uma vez será necessário o apoio de pelo menos 49 senadores. Ou seja, sozinha, a
bancada dos investigados tem poder quase que para mudar a Constituição. Juntos,
os senadores investigados acumulam 107 inquéritos e 15 ações penais. Oito deles
já são réus. Ou seja, tiveram denúncia aceita pelo Supremo, que entendeu haver
indícios de que esses parlamentares cometeram os crimes atribuídos a eles pela
Procuradoria-Geral da República.
Corrupção, lavagem de dinheiro, desvio ou apropriação de
verba pública e crimes eleitorais e contra a Lei de Licitações são algumas das
acusações que mais se repetem contra os senadores. Entre os investigados, estão
28 suspeitos de receber dinheiro ilicitamente de empreiteiras ou do esquema de
corrupção na Petrobras. Um deles é o presidente do Senado, Eunício Oliveira
(PMDB-CE), o único, entre todos os senadores investigados, que seguiria com
foro no Supremo caso a mudança constitucional seja confirmada.
A sugestão para que a proposta saísse da CCJ diretamente
para o plenário, ainda na quarta, foi feita pelo atual líder do PMDB e
ex-presidente da Casa Renan Calheiros (PMDB-AL), que acumula mais de dez
inquéritos relacionados à Lava Jato.
Desde que o ministro Edson Fachin autorizou a abertura de 76
novos inquéritos para investigar políticos e autoridades com base nas delações
de ex-executivos da Odebrecht, o número de senadores encrencados na corte
saltou de 34 para 44 – um recorde na história do Senado. A pedido do
procurador-geral da República, com base nos relatos dos delatores, o relator da
Lava Jato determinou investigação contra 24 senadores. Além de Eunício, também
entraram na mira da Lava Jato nomes como o do ex-ministro das Relações
Exteriores José Serra (PSDB-SP) e o do presidente do PSDB, Aécio Neves (MG).
De acordo com números apresentados pelo relator, Randolfe
Rodrigues (Rede-AP), mais de 38 mil autoridades no país têm foro por
prerrogativa de função. Instância julgadora dos congressistas, o Supremo sempre
foi visto como um caminho para a impunidade. Só em 2010 o tribunal condenou
pela primeira vez um parlamentar.
De repente, a pressa
Por isso, no momento em que o Senado atinge o maior número
de investigados de sua história, chamou a atenção a pressa da Casa em votar o
fim do foro privilegiado, uma proposta que enfrentava resistência desde que foi
apresentada, em 2013.
Dois são os motivos apontados, nos bastidores, para essa
repentina celeridade: o primeiro era o risco de congressistas assistirem ao
Supremo extinguir, já em maio, o foro privilegiado apenas para deputados e
senadores (o texto aprovado acaba com a prerrogativa para todas as autoridades,
inclusive do Judiciário e do Ministério Público); o segundo é tentar embaralhar
as investigações da Lava Jato, retardando a tramitação de seus processos até
uma eventual prescrição na Justiça em seus estados. Há, ainda, quem aposte que
tudo não passou de um jogo de cena, que os senadores tentaram passar uma imagem
positiva para a sociedade por entenderem que a Câmara tenderá a segurar ou
rejeitar a proposta.
Antes do Supremo
O Supremo deve analisar em maio uma proposta do ministro
Luís Roberto Barroso que restringe o alcance do foro privilegiado a acusações
por crimes cometidos durante e em razão do exercício do cargo. No processo de
votação da PEC, o líder do DEM no Senado, Ronaldo Caiado (GO), chegou a alertar
os demais senadores sobre o assunto.
“Vamos votar, senão o Supremo vota antes da gente”, disse o senador,
queixando-se do avanço da corte, segundo ele, sobre prerrogativas que são do
Congresso.
O fim do foro privilegiado sempre foi apontado como uma das
saídas contra a impunidade de políticos. Responsável por dar a palavra final
sobre questões constitucionais, o Supremo costuma ser criticado por juristas e
membros do Ministério Público pela falta de traquejo para lidar com ações
criminais, o que favorece a prescrição de crimes. Muitas vezes, o caso não é
julgado durante o exercício do mandato. Passa todo esse período nas gavetas do
STF e desce para instâncias inferiores, retardando ou até impedindo uma
eventual punição.
Levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de
Janeiro mostra que 276 (68%) das 404 ações penais concluídas entre 2011 e março
de 2016 no STF prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores,
porque a autoridade deixou o cargo. A condenação ocorreu só em 0,74% dos casos.
“Privilégio odioso”
Para Randolfe Rodrigues, a prerrogativa de foro virou abrigo
para autoridades que tentam fugir da Justiça. “É notório que restou
ultrapassada a ideia de que o foro por prerrogativa de função serviria para
proteger o cargo, não o seu ocupante. O que se observa, ao contrário, é que
muitas pessoas buscam o mandato eletivo justamente para fugir das instâncias
ordinárias da Justiça, conduta francamente reprovável”, criticou em seu
parecer.
Na avaliação dele, o fim do foro virou sinônimo de
impunidade. “Hoje o foro especial é visto pela população como verdadeiro
privilégio odioso, utilizado apenas para proteção da classe política – que já
não goza de boa reputação -, devido aos sucessivos escândalos de corrupção.
Oportuno e conveniente, portanto, modificar as regras vigentes, no que tange ao
foro privilegiado”, acrescentou.
Em seu relatório, Randolfe destaca levantamento da Revista
Congresso em Foco que mostrou que mais de 500 parlamentares haviam sido
acusados de crimes no Supremo até 2014. Conforme mostrou este site, antes mesmo
da divulgação da lista dos novos investigados na Lava Jato, um em cada três
congressistas estava respondia a acusações criminais no STF.
Veja como é o foro das autoridades no Brasil:
- Presidente da República, ministros de Estado e dos
tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União (TCU), o procurador-geral
da República e embaixadores são julgados pelo STF;
- Governadores são julgados, em crimes comuns, pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ), assim como desembargadores dos tribunais de Justiça,
membros de tribunais de contas estaduais e municipais, além de integrantes de
tribunais regionais (TRF, TRT, TRE, etc);
- Juízes militares, federais, do Trabalho e procuradores da
República são julgados pelos tribunais regionais federais (TRF);
- Prefeitos e integrantes do Ministério Público também
possuem foro privilegiado.
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