domingo, 24 de dezembro de 2017

O QUINTETO QUE SACUDIU O ANO

Da ÉPOCA
Recapitular o ano que acaba é uma tradição sedimentada no jornalismo. As edições finais de veículos do mundo todo pausam para exumar o passado recente. Voltar-se sobre si é, antes de um hábito, uma necessidade. É no reencadeamento de fatos e episódios que extraímos deles algum sentido para o que foi. Um norte para o que virá. No prazer prosaico de fazer cócegas na memória com uma banalidade qualquer do aleatório 23 de julho. Ou na evocação de acontecimentos que alteraram o curso das grandes coisas, como no preciso 17 de maio – dia em que vazou o áudio gravado pelo empresário e delator Joesley Batista em conversa subterrânea com o presidente Michel Temer. Flanar sobre a linha do tempo nos dá a condição de espectadores privilegiados da história a cuja construção assistimos ao vivo.
Revisitar o ano de 2017, em que houve dias que valeram por décadas (e não são todos assim?), e filtrar o que nele transcorreu de mais importante implica fazer recortes dramáticos. A escolha de ÉPOCA foi apresentar 2017 por meio de personagens que carregaram o ano em suas histórias individuais. Nomes que, por sua relevância, abarcam outros tantos de enorme estatura. Listas são cruéis, injustas e ingratas. A seleção de eleitos invariavelmente exclui alguém que merecia estar ali. Não raro uma avaliação dos preteridos diz mais sobre o tema do que a dos escolhidos. Mas listas oferecem um panorama coerente sobre o caos.
A seleção de ÉPOCA seguiu um critério fundamental: quem foram os personagens que abalaram nosso mundo? Que nos surpreenderam? Que nos fizeram abrir mais uma na mesa do bar para levar a discussão adiante? Chegamos ao quinteto das próximas páginas. Há outros? Absolutamente. Há quintetos mais engraçados, mais diversos, mais funestos. Sim, mas o Brasil teria sido outro sem a delação de Joesley Batista e seus áudios tão reveladores; sem a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua batalha para se manter presidenciável; sem a exaltação de Jair Bolsonaro e seu exército de reacionários; sem a dignidade do técnico Tite e sua ressurreição do futebol brasileiro; o mundo teria sido outro sem as sandices de Donald Trump no Twitter e na vida real. O ano de 2017 teria sido outro sem a atuação dos nomes acima.
Lula – preso à eleição
O ônibus do PT que conduzia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por uma caravana pelo Nordeste já passara por quase todas as 27 cidades previstas em seu plano inicial. À medida que se aproximava do último comício, em São Luís, Maranhão, em 5 de setembro de 2014, a azáfama aumentava na equipe do ex-presidente José Sarney, do PMDB. Este queria um encontro público com Lula para ajudar na pré-campanha da filha Roseana ao governo do estado. Assessores de Sarney tentaram contato com assessores de Lula; líderes do PMDB procuraram líderes do PT local; o próprio Sarney se mexeu. Nada. Lula estava comprometido com o governador Flávio Dino, do PCdoB, aspirante à reeleição, que não toleraria concessão pública alguma aos Sarneys. Assim foi.
Na noite de 5 de setembro, de camisa branca larga, Lula estava suado no palanque ao lado de um Flávio Dino de vermelho. “Agradeço o carinho, a lealdade e a dedicação do companheiro Flávio Dino para que a gente pudesse realizar esse ato na noite de hoje encerrando a nossa caravana”, disse Lula, enternecido, quase sem voz, após mais de uma hora no palco. Porém, apesar de tal desfeita política em público, Sarney não perdeu. Negocia para o amigo Lula apoiar mais uma vez a candidatura de Roseana. “Sarney e Lula nunca deixaram de conversar. São amigos”, afirma Emídio de Souza, dirigente do PT. Desse modo, como acontece desde 2002, Flávio Dino deve ver seu herói subir no palanque dos rivais Sarneys quando a campanha de 2018 começar. Aliás, como quase sempre. 
A competição entre adversários pela bênção de Lula, especialmente no Nordeste, dá-se em função de um fato incontestável: o petista ainda detém enorme prestígio político. Seja como candidato, algo altamente improvável, seja como padrinho político, o petista será decisivo para muitas campanhas em 2018.  “Lula fará parte da campanha presidencial em posição de protagonista em 2018 de um jeito ou de outro”, diz o senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco. “E é claro que se disputar como candidato será grande a influência dele na formação de alianças nos palanques regionais. Se ele não for candidato, é possível que muitas delas não se concretizem.” “De um jeito ou de outro” traduz bem a estratégia eleitoral de Lula e do PT para 2018. Lula foi, é e será a única opção do PT na disputa. O destino de Lula vai determinar o destino não só do PT, mas de seus aliados e até dos adversários.
Lula foi condenado em julho pelo juiz Sergio Moro a nove anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, marcou para 24 de janeiro o julgamento do recurso de sua defesa. Pela lei, réus condenados em segunda instância não podem se candidatar a nenhum cargo. Para Lula e para o PT, isso pouco importa – mesmo impedido pela Justiça, ele seguirá fazendo campanha, de modo a tentar reanimar o corpo político comatoso do PT. Caso os três desembargadores do TRF-4 mantenham a condenação – a projeção mais provável, devido ao histórico do tribunal em relação às sentenças de Moro –, Lula torna-se inelegível. Mas não imediatamente. A depender do resultado do julgamento – condenação por unanimidade ou por 2 a 1 –, os tipos de recursos que a defesa poderá apresentar e os prazos de tramitação variam. Assim, a situação jurídica de Lula dificilmente estará oficialmente definida até 15 de agosto, data final para o PT inscrevê-lo como candidato a presidente pela sexta vez.
Lula e o PT usarão o tempo dos recursos judiciais numa estratégia de guerrilha eleitoral. É enorme a chance de Lula manter sua pré-campanha e também fazer campanha oficialmente, talvez até o meio de setembro, até que a Justiça Eleitoral barre sua candidatura a presidente da República. É um ótimo negócio para ele e o PT. Enquanto puder, Lula abusará da imagem de mártir, de injustiçado que só não será eleito pelo povo para salvar o país porque perdeu no tapetão para uma elite que o persegue. É a melhor saída, a menos desonrosa, para sua carreira política. Ao PT, o martírio dará a visibilidade necessária para formar alianças e, pragmaticamente, ter chances de eleger uma bancada razoável de deputados federais para a próxima legislatura.
Os mais espertos e experientes da política sabem de tudo isso. Movem-se para perto de Lula, para aproveitar sua órbita de popularidade enquanto ela durar ao longo de 2018. Em tempos de Lava Jato, em que políticos são ainda  mais vistos como corruptos, colar em Lula é colar no único político que virou saco de pancadas dos investigadores e permaneceu de pé, ainda que bambo. Se Lula é vítima de armação, por que eu também não posso ser? Apoiadores fiéis do presidente Michel Temer, como o presidente do Senado, Eunício Oliveira, do PMDB, já declararam amor a Lula em eventos recentes. Movimento antes inimaginável, Eunício se aproxima publicamente do governador do Ceará, Camilo Santana, do PT, com quem manteve uma disputa renhida em 2014. Em ato político no começo de dezembro, posaram juntos para fotos. “Eu sou Lula”, disse Eunício, fazendo a letra “L” com o polegar e o indicador.
Colega de Eunício no partido, no Senado e na Lava Jato, Jader Barbalho é outro que quer ficar ao lado de Lula. Lançará o filho Helder, ministro da Integração Nacional, candidato ao governo do Pará. Ainda que Helder seja ministro de Michel Temer, o que Jader quer é uma aproximação com Lula, a chance de dividir um palanque. “Corrupto por corrupto, os eleitores pensam que é melhor votar em Lula”, diz um integrante do PMDB próximo de Temer, ao explicar a lógica que move os políticos. O senador Renan Calheiros, também do PMDB, percebeu isso antes de todo mundo e se garantiu. Foi o primeiro a romper com Temer e distanciar-se dele, meses atrás, e fechar com Lula. Renan foi em busca da sobrevivência – com 17 inquéritos no Supremo, precisa se reeleger senador para manter o foro privilegiado, condição que reduz a velocidade dos processos; foi atrás também da reeleição do herdeiro, Renan Filho, governador de Alagoas. Pioneiro, Renan fez isso quando Lula estava na pior, receoso até de sair de casa. Por isso diz-se em Brasília que, se Renan pular de um prédio, é bom pular atrás porque embaixo há água. Hoje, enquanto Temer permanece nos mais baixos níveis de popularidade, Lula lidera as – incipientes, é verdade – pesquisas para presidente.
Lula aparece na mais recente pesquisa Datafolha com 36% das intenções de voto. Está isolado na liderança, com exatamente o dobro do segundo colocado, o deputado Jair Bolsonaro. Assim, é irresistível para parte dos políticos colar em Lula. Com exceção dos petistas, ao resto não importa se ele poderá ser candidato até o fim ou, mais longe ainda, que seja eleito; importa que faça campanha por algum tempo e eles faturem em cima da popularidade dele. Para a turma que sofre com a Lava Jato, Lula é um achado, pois tem tamanho para falar mal da investigação. Começou batendo nos procuradores da força-tarefa de Curitiba, fustigou Sergio Moro e agora enfrenta os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.
Assim, Lula se tornou uma espécie de patrono, presidente informal e líder inequívoco de uma organização suprapartidária, o Partido Anti-Lava Jato, o mais numeroso bloco que disputará a próxima eleição. Os políticos que, acossados pela investigação, conseguiram a aprovação do fundo partidário com dinheiro público para custear suas campanhas agora buscam o mais difícil, votos. É a segunda parte da missão pela sobrevivência, para permanecerem com foro privilegiado e, assim, ficarem menos expostos à chance de ser presos. Esses políticos sabem que, se um ídolo como Lula é contra a Lava Jato e seu combate à corrupção, eles também não precisam mais ter vergonha de ser.
É difícil que Lula permaneça na disputa até o fim, por isso o ex-governador da Bahia Jaques Wagner e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, este uma cria de Lula, podem assumir sua posição de candidato do PT à Presidência no final. Nesse ponto, no entanto, as pesquisas não ajudam os planos de Lula: nada indica que ele consiga repetir o feito de eleger um escolhido, como fez com Dilma Rousseff em 2010. O problema é justamente o governo dela, que permanece impopular na memória de quem o viveu.
Se Lula terminou 2016 como réu em três ações penais, em 2017 se tornou réu em sete, incluindo aquela em que foi condenado. Lula, um ex-presidente, teve de depor duas vezes ao juiz Sergio Moro. Na primeira, vestindo um terno cinza e uma gravata listrada de verde, amarelo e preto, estava acuado e adotou um tom pacificador, respondendo às perguntas sem partir para o ataque durante quatro horas. À saída, ao lado de Dilma, discursou num comício armado pelo PT. “Haverá um momento em que a história irá mostrar que nunca antes na história do Brasil alguém foi tão perseguido ou massacrado como eu estou sendo nestes últimos anos”, afirmou.
Às 13h52 de 12 de julho, Moro concluiu e assinou eletronicamente a sentença de Lula. O que levou Lula a se tornar o primeiro ex-presidente brasileiro condenado por crime comum foi o recebimento de propina na forma de um apartamento dado pela empreiteira OAS. O ex-presidente pagava cotas da Bancoop, a cooperativa habitacional dos bancários de São Paulo, para um apartamento simples, o 141 do Condomínio Solaris, em Guarujá. Entretanto, a Bancoop quebrou e o empreendimento foi adquirido pela OAS. Enquanto corria o petrolão, e a OAS era uma das beneficiadas pelos contratos superfaturados da Petrobras em troca de propina, o então presidente da empreiteira, Léo Pinheiro, providenciou que o apartamento simples virasse um tríplex. A diferença entre os dois imóveis foi de R$ 1,1 milhão, segundo o Ministério Público Federal (MPF). Mandou instalar elevador privativo, ampliar o deck da piscina, equipar a cozinha com eletrodomésticos e outros mimos. As benesses somaram mais de R$ 1,3 milhão, nos cálculos do MPF.
Léo Pinheiro foi pessoalmente mostrar o imóvel ao ex-presidente e sua família. “Praticamente todos os depoimentos de executivos e empregados da OAS Empreendimentos são no sentido de que a empresa não prestava esse tipo de serviço, reforma ou personalização de unidades habitacionais, especialmente para pessoas que ainda não eram proprietárias”, diz a sentença de Moro. “Todos ainda reconheceram que o apartamento 164-A, tríplex, foi o único, no Condomínio Solaris – e havia outros apartamentos tríplex –, a receber esse tipo de reforma.”
Os valores foram abatidos da conta-corrente de propinas devidas pela OAS ao PT, conforme disse Léo Pinheiro ao juiz Sergio Moro. Lula só formalizou sua desistência da compra do tríplex em novembro de 2015, quando o tríplex já era conhecido e a Lava Jato corria solta. Ao concluir a decisão, Moro escreveu: “Registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário. É de todo lamentável que um ex-Presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei. Prevalece, enfim, o ditado ‘não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você’”.
Após a sentença, a defesa de Lula reiterou que o ex-presidente é inocente, apontou que ele é alvo de uma “investigação politicamente motivada” e que o processo não tinha “nenhuma evidência crível de culpa”. A defesa de Lula foi competente em tentar irritar Moro e em buscar caminhos que atrasassem o processo – este segundo ponto será fundamental na estratégia para que ele seja candidato em 2018. Na parte jurídica, no entanto, os efeitos não foram positivos. As evidências de que Lula sabia do esquema criminoso na Petrobras e recebeu benesses de empresas que se beneficiaram desse esquema são fortes. Em crimes de colarinho branco, os pagamentos de propina muitas vezes são dissimulados, justamente para ficarem mais difíceis de rastrear, como no caso do tríplex.
A tese de defesa de Lula começou com uma sucessão de depoimentos de delatores detalhando ao juiz Sergio Moro a ciência e a participação do petista em esquemas de corrupção. Em abril, o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro disse que o tríplex no Condomínio Solaris pertencia ao petista. “O apartamento era do presidente Lula e sua família.” E completou: “Nunca (o imóvel) foi colocado à venda pela OAS. Em 2009, foi dito para mim: “Essa unidade, não faça nenhuma comercialização sobre ela, ela pertence à família do presidente”. No início de maio, o ex-diretor da Petrobras Renato Duque relatou que Lula demonstrou preocupação com o andamento da Operação Lava Jato. Duque relatou: “Ele (Lula) me pergunta se eu tinha uma conta na Suíça com recebimentos da empresa SBM, dizendo que a então presidente Dilma tinha recebido a informação de que um ex-diretor da Petrobras tinha recebido dinheiro em uma conta na Suíça, da SBM. Eu falei: ‘Não, não tenho dinheiro nenhum, nunca recebi dinheiro da SBM’”.
O delator prossegue. “Ele falou: ‘Olha, presta atenção. Se tiver alguma coisa, não pode ter, entendeu? Não pode ter nada no teu nome’.” Duque conclui: “Nessas três vezes, ficou muito claro para mim que ele tinha pleno conhecimento de tudo e tinha comando”. Mas foi o depoimento de Antonio Palocci, em setembro, que bambeou de uma vez a defesa de Lula. Palocci foi um dos homens mais próximos de Lula. Ocupou o Ministério da Fazenda entre 2003 e 2006 e voltou ao executivo, pelas mãos do amigo, para chefiar a Casa Civil no primeiro ano do governo Dilma. “O Emilio (Odebrecht) abordou (Lula) no final de 2010, não foi para oferecer alguma coisa, doutor, foi para fazer um pacto, que eu chamei de pacto de sangue. Envolvia um presente pessoal que era um sítio, envolvia o prédio de um museu pago pela empresa, envolvia palestras pagas a R$ 200 mil, fora impostos, combinadas com a Odebrecht. E envolvia uma reserva de R$ 300 milhões”, revelou Palocci.
Devido aos inúmeros recursos à disposição de Lula, é difícil projetar se o petista começará a cumprir sua pena, ainda que provisoriamente, em 2018 – o que inclui tempo de prisão. O Supremo Tribunal Federal pode reanalisar em 2018 a questão da prisão de réus condenados a partir de decisão em segunda instância. Assim, mesmo que a condenação seja mantida no TRF-4, Lula poderá recorrer em liberdade. Se depender do histórico da Oitava Turma do TRF-4, a probabilidade de Lula conseguir reverter sua condenação é muito baixa. As apelações ao TRF-4 julgadas até agora, referentes à Lava Jato, envolvem 108 réus de 23 processos. Desse total, o colegiado aumentou a pena de 33. No caso de outros 22 réus, a turma manteve a pena estabelecida pelo juiz de primeira instância. Em 15 casos, o colegiado diminuiu a pena, mas manteve a condenação. Em 13 casos, os desembargadores mantiveram a absolvição. Somente em dois casos a turma reverteu completamente uma condenação de Moro, ambos referentes a processos do ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto, preso em Curitiba. Num terceiro processo, porém, a turma aumentou a pena imposta por Moro a Vaccari.
Lula combate a dureza da Justiça com a elasticidade do discurso político. Sabe que nesse terreno tem poucos concorrentes. Por isso saiu numa caravana planejada de forma cirúrgica pelo PT para dar-lhe muito palanque e devoção, sem nenhum desgaste, para tentar se curar após a condenação imposta por Moro. Num ônibus fretado, com uma equipe de assessores, fotógrafos, cinegrafistas e políticos, Lula percorreu cidades do Nordeste – onde sua popularidade foi menos afetada pelas acusações de corrupção feitas pela Lava Jato – fazendo comícios em campanha aberta entre 17 de agosto e 5 de setembro. “A elite pensa que vai impedir que eu seja candidato. Tenho 71 anos, mas estou com vontade de brigar como se tivesse 30”, disse em Picos, no semiárido do Piauí, em 2 de setembro passado. Era uma pré-campanha, um ano antes da eleição, com uma condenação nas costas. Em 2018, Lula tentará fazer isso a poucos meses da eleição, como candidato do PT à Presidência da República, provavelmente como líder nas pesquisas e com uma segunda – e definitiva – condenação nos ombros. Como sempre, tentará resolver na política.
Joesley Batista – o delator do Brasil
A pele vincada, a boca torta nos cantos e o cabelo desarrumado explicitam a derrota na face de Joesley Batista, empresário, sócio do grupo J&F, detento. Ele ouve o discurso do deputado Carlos Marun, do PMDB, o Silvio Costa de Michel Temer, um discurso que o espezinha. “O senhor passa a ser parte desta conspiração para derrubar o presidente. O senhor recebe este escandaloso presente, que é a imunidade, que lhe permite partir, o senhor, sua trupe, o iate, o avião, para nunca mais voltar, livre, leve e solto nos ‘States’”, diz Marun, gesticulando e olhando para Joesley e para a plateia da CPMI da JBS. “Eu acho que o senhor não é tão bandido quanto o senhor confessa ser, sinceramente (...) Mas o senhor chegou a um momento em que o senhor, que era um mafioso de terceira categoria, resolveu achar que era o Al Capone.” De camisa azul-clara, paletó e sem gravata, Joesley está enfastiado. “Eu me mantenho em silêncio”, diz.
Joesley permanece assim durante as mais de três horas de depoimento, como fazem aqueles convocados a CPIs que teriam muito a dizer e não dizem. Mas tem de ouvir os defensores de Temer o açoitarem naquele 28 de novembro. “Nunca ouvi na história deste país pessoa que tivesse essa ambição insaciável”, diz Heuler Cruvinel, do PSD goiano. “O senhor já era rico, já tinha iate, já tinha avião a jato, já tinha apartamento em Miami, em Paris, em Nova York, não tinha essa necessidade de ocasionar esse prejuízo para quem trabalha.” Joesley Batista nunca imaginara estar numa CPI, ser maltratado por pessoas que o adulavam poucos meses antes, quando distribuía propina – a boa parte delas ou aos chefes delas. Assim como se vangloriava de ter virado o Brasil pelo avesso, Joesley viu sua vida sofrer o mesmo.
A derrocada de Joesley se confunde com a do Congresso, do governo Temer e a difícil fase da Operação Lava Jato em 2017. Ele e seu grupo J&F estavam na mira das investigações desde 1o de julho de 2016, quando a Polícia Federal deflagrou a Operação Sépsis. Na ocasião, policiais estiveram numa das empresas do grupo, a Eldorado, suspeita de ter pagado propina para obter recursos do fundo de investimentos do Fundo de Garantia, gerido pela Caixa. Fábio Cleto, ex-vice-presidente do banco, cumpridor de ordens do deputado Eduardo Cunha, do PMDB, entregara as primeiras provas inequívocas disso. Em seguida, a Operação Greenfield descobriu um esquema igual, só que com fundos de pensão de empresas estatais.
Foi em dezembro de 2016 que Joesley incumbiu gente sua de procurar a força-tarefa da Lava Jato, em Brasília, em busca de um acordo para fazer uma delação premiada. Sabia que era sua única saída para não terminar quebrado e preso, como a turma da Odebrecht. Os procuradores farejaram o medo e começaram a jogar. Primeiro, como de praxe, ignoraram as investidas. Deram um gelo de três meses. Joesley se desesperava. Em 19 de fevereiro de 2017, o diretor jurídico Francisco de Assis e Silva telefonou para o procurador Anselmo Lopes, que conduzia as investigações da Greenfield e da Sépsis na primeira instância, e informou que o grupo queria colaborar. Avisada por Anselmo, a Procuradoria-Geral da República considerou que era a hora. Joesley, então, ofereceu seu trunfo, uma conversa gravada com o presidente Michel Temer em 7 de março, no Palácio do Jaburu.
Joesley chegou ao Jaburu por volta das 22 horas, com o passe livre por ser um visitante enviado pelo deputado Rodrigo Rocha Loures, então assessor da confiança de Temer. Desfiou uma coleção de ilegalidades e crimes, que Temer ouviu sem se manifestar. Joesley relatou a Temer diversos crimes que cometia, como corromper juízes e procuradores. Pediu a Temer um interlocutor para resolver um problema de uma de suas empresas – e ouviu que este seria Rocha Loures. Informou que comprava o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha na cadeia. “O que eu mais ou menos me dei conta de fazer até agora? Eu tô de bem com o Eduardo...”, disse. Em troca, ouviu de Temer a frase que definiu 2017: “Tem de manter isso, viu?”.
No mesmo dia que celebrou o acordo com a Procuradoria, Joesley prestou os primeiros depoimentos formais e assinou um termo de pré-acordo de colaboração, para permitir que o Ministério Público Federal conduzisse uma iniciativa inédita na Lava Jato: ações controladas sob monitoramento da Polícia Federal para gravar e acompanhar entregas de dinheiro a políticos, a fim de produzir provas. Em uma dessas ações, a PF filmou um encontro entre o lobista da JBS, Ricardo Saud, e Rodrigo Rocha Loures, o interlocutor indicado por Temer para ser o intermediário entre ele e Joesley, em um restaurante em São Paulo. Foi lá que os policiais captaram a clássica cena de Rocha Loures dando aquela corridinha ridícula com uma mala recheada com R$ 500 mil da JBS. Segundo Joesley, era propina para resolver os tais  “problemas” de uma de suas empresas com o governo, como dissera a Temer.
A gravação da noite no Jaburu tornou-se pública em 17 de maio e disparou a crise que definiu o governo Temer para sempre. No dia seguinte, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal deflagraram a Operação Patmos, que revelou os primeiros detalhes da delação da JBS. Rodrigo Rocha Loures, o atleta da mala, foi preso; dias depois, devolveu a mala com R$ 35 mil a menos. A cúpula do governo, que já estava acuada com a delação da Odebrecht pelas citações aos ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da Secretaria-Geral da Presidência, Moreira Franco, se encolheu ainda mais. Temer recebeu conselhos para renunciar ao cargo.
No meio da tarde do dia 18 de maio, Michel Temer fez um pronunciamento à nação no Palácio do Planalto. “Não renunciarei. Repito: não renunciarei. Sei o que fiz e sei da correção dos meus atos”, disse. O nervosismo de Temer era latente. Ele deixou de lado mesuras que preza, elevou a voz, mudou de posição ininterruptamente diante do microfone, usou palavras agressivas e estava um pouco rouco. Convocado de última hora, o evento em si teve impacto político negativo, já que não havia nenhum líder partidário de destaque a seu lado. Temer negou que soubesse do pagamento a Rocha Loures e falou que havia uma espécie de conspiração contra ele e o país, confundindo um com o outro. O Congresso esperava a renúncia. As negociações para a reforma da Previdência foram interrompidas. O governo parou e se concentrou na salvação do mandato do presidente.
As ações controladas de Joesley captaram outras frases antológicas e definiram outros destinos, como o do senador Aécio Neves, do PSDB mineiro. Numa conversa na qual não economizou palavrões, Aécio pediu R$ 2 milhões a Joesley para, segundo ele, pagar advogados que o defendiam nos inquéritos abertos pela Lava Jato por suspeitas de corrupção. Não explicou por que não procurou o banco Original, do grupo de Joesley, ou outra instituição financeira, que fazem operações assim para pessoas físicas e jurídicas. Aécio indicou seu primo Frederico Pacheco de Medeiros como emissário para receber o dinheiro vivo: “Tem de ser um que a gente mata ele antes de fazer delação”, disse, rindo. Fred, como é conhecido, pegou o dinheiro em mochilas e foi preso, no mesmo dia que Rocha Loures e Andrea Neves, irmã de Aécio. Pior de tudo, o rastreamento na ação controlada pela Polícia Federal detectou que, ao contrário do que disse Aécio, o dinheiro não foi parar na mão de advogado algum.
Em seus depoimentos à Lava Jato, Joesley Batista abriu as arcas da corrupção que fizeram sua empresa passar de grande a gigante mundial. Sua receita foi pagar propina aos governos do PT para receber financiamentos oficiais e, assim, fazer aquisições. Graças ao que foi pago em propina ao PT durante os governos Lula e Dilma, suas empresas receberam cerca de R$ 10 bilhões em investimentos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Graças a isso, durante o reinado petista a JBS comprou a americana Swift e inúmeros concorrentes menores no Brasil; expandiu-se para outros ramos além da carne; criou a holding J&F para unir suas empresas; tornou-se uma das maiores companhias do mundo no ramo de carnes.
Joesley revelou seu método: para cada um dos financiamentos obtidos no BNDES, separava um percentual em propina em duas contas nos Estados Unidos; as tais contas chegaram a ter US$ 150 milhões, usados depois para pagar despesas petistas e de políticos indicados pelo partido nas campanhas eleitorais de 2010 e 2014. O emissário que lhe avisava a hora de gastar era o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. Bancou também propina para o PMDB de Temer e outros partidos para evitar problemas em suas empresas e alavancar outros negócios.
A delação de Joesley, de seus executivos e o material entregue por eles resultaram num conjunto de provas tão rico quanto o fornecido pela Odebrecht meses antes. Enquanto a empreiteira corrompia no atacado, fazendo negócios com a cúpula do poder em Brasília, a JBS fazia atacado e varejo, corrompia tanto a cúpula de Brasília quanto os escalões inferiores na capital e nos estados. Sua delação deixou transparente o esquema de arrecadação ilícita de PMDB, PT, PSDB e implicou mais de 1.800 políticos de todos os partidos. Pelas histórias e provas de Joesley, foi possível ver como o sistema de loteamento de cargos no governo rendia dinheiro a líderes partidários. Num deles, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, usava Fábio Cleto para cobrar propina em troca da liberação de recursos do bilionário fundo de investimentos do Fundo de Garantia para empresas da JBS.
Os relatos de Joesley fizeram de Michel Temer o primeiro presidente da República do Brasil a ser denunciado por crimes comuns no exercício do cargo. No dia 26 de junho, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a primeira denúncia contra Temer, por corrupção passiva, baseada nos testemunhos do empresário, que até ali desfrutara da amizade do presidente. No dia seguinte, Temer atacou Janot e Joesley com ferocidade. “No caso do senhor grampeador, o desespero de se safar da cadeia moveu a ele e seus capangas para, na sequência, haver homologação de uma delação e distribuiu o prêmio da impunidade”, disse. Temer denunciou a atuação do ex-procurador Marcello Miller, que deixara a Procuradoria para atuar como advogado da JBS, e reclamou do tratamento benevolente dispensado a Joesley.
Encaminhada pelo Supremo à Câmara, em seu caminho a denúncia consumiu praticamente todo o capital político de Temer. Num esforço gigantesco de fisiologismo, que custou mais de R$ 2 bilhões em emendas apenas em um mês, perdão de dívidas e a distribuição de cargos, entre outras benesses aos políticos, no dia 2 de agosto o governo conseguiu barrar a primeira denúncia por 263 votos a 227. Contudo, ainda havia uma segunda denúncia a caminho, por organização criminosa e obstrução da Justiça.
Quando se imaginou que, após três anos de seu início, a Lava Jato chegava a seu ápice, atingindo com provas flagrantes o presidente da República e a cúpula do poder, veio o percalço. Num domingo, 3 de setembro, Janot e seus auxiliares mais próximos examinavam a última leva de provas que os delatores da JBS tinham se comprometido a entregar. Havia num dos gravadores um áudio ainda desconhecido. Após um encontro no qual gravou o presidente do PP, senador Ciro Nogueira, um dos acusados de receber propina, o lobista da JBS Ricardo Saud esqueceu o aparelho ligado. As quatro horas seguintes de conversa entre Saud, Joesley e outros ficaram registradas no aparelho enviado à Procuradoria. Além de algumas dispensáveis obscenidades e devaneios de grandeza de bêbados, havia menções a omissões de provas – uma falta grave nos acordos de delação –, uma conversa sobre um tosco plano para incriminar ministros do Supremo e à atuação do ex-procurador Marcello Miller, auxiliar de Janot na Lava Jato, no acordo de delação.
Janot e seus auxiliares ficaram furiosos. Na segunda-feira, 4 de setembro, Janot fez um desastrado pronunciamento. “Determinei hoje a abertura de investigação para apurar indícios da omissão de informações sobre práticas de crime no processo de negociação para assinatura do acordo de colaboração premiada no caso JBS”, disse. “Áudios com conteúdo grave, eu diria gravíssimo, foram obtidos pelo Ministério Público Federal na semana passada, precisamente quinta-feira, às 19 horas. A análise de tal gravação revelou diálogo entre dois colaboradores com referências indevidas à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal. Tais áudios também contêm indícios, segundo esses colaboradores, de conduta em tese criminosa atribuída ao ex-procurador Marcello Miller.” Mais tarde, ficou claro que nada havia de irregular sobre ministros do Supremo.
O mais vantajoso acordo de colaboração da Lava Jato, que dava a Joesley e aos seus imunidade, encerradas outras investigações, e permitia até viagens ao exterior, foi suspenso. O “nós não vai ser preso” da conversa de Joesley e sua turma caiu. Janot pediu ao Supremo Tribunal Federal a prisão temporária de Joesley, Ricardo Saud e Marcello Miller; o ministro Edson Fachin rejeitou apenas a detenção de Miller. Em 10 de setembro, Joesley e o irmão Wesley se entregaram à Polícia Federal. Com a derrocada dos Batistas, em outubro Temer se livrou com menos dificuldade da segunda denúncia apresentada por Janot. 
A reviravolta na delação da JBS marca um ponto de inflexão para a Lava Jato. O pronunciamento desastrado sobre o áudio clandestino maculou Janot. Depois dele, o Supremo mudou a conduta em relação a tudo relacionado à delação da JBS. Além de Temer se livrar do perigo, os políticos iniciaram um contra-ataque. Conseguiram aprovar um aumento de R$ 2 bilhões em dinheiro público no fundo partidário para bancar suas campanhas em 2018 – para compensar o fim das doações de empresas. O senador Aécio Neves virou um símbolo dessa fase. Afastado duas vezes do cargo pelo ministro Edson Fachin por sua conduta, terminou livre após um confronto institucional, no qual o Supremo cedeu e permitiu que o Senado tivesse poder de decidir se cumpre decisões judiciais sobre mandato de senadores.
Os benefícios dados pelo acordo de colaboração da JBS estão suspensos temporariamente e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, analisa se pedirá ao STF a rescisão total do acordo ou se ainda é possível negociar alguma repactuação. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal deverá discutir com profundidade a validade da delação e os critérios adotados nos acordos de colaboração premiada, julgamento fundamental para o futuro da Lava Jato.  A salvação de Temer custou caro: ao gastar capital político para permanecer no cargo, Temer não teve força para aprovar a reforma da Previdência, adiada para 2018.
Passava das 13h30 de 28 de novembro quando o interrogatório de Joesley Batista na CPMI da JBS terminou. Sem alterar o semblante, ele levantou e trocou um aperto de mãos com o presidente da comissão, o senador tucano Ataídes Oliveira, e saiu. Seguiu para a base aérea, onde embarcou de Brasília para São Paulo, uma viagem que fez inúmeras vezes quando era poderoso. Mas desta vez foi como detento, no jato da Polícia Federal, menos luxuoso que o seu.
Jair Bolsonaro – o capitão dos conservadores
Na última sexta-feira de novembro, o deputado federal Jair Bolsonaro chegou uma hora adiantado a Guaratinguetá, 182 quilômetros ao norte de São Paulo. Queria ter tempo para confraternizar com soldados, cabos e sargentos antes da cerimônia de formatura da Escola de Especialistas da Aeronáutica, prevista para as 10h30. Uma garoa fina abafou o ar, mas Bolsonaro estava à vontade em seu terno chumbo. De broche de deputado na lapela, ele discursou. “Eu queria mesmo é ser deputado em Cuba”, disse. Os militares a seu redor tentaram acompanhar o raciocínio de Bolsonaro. “Primeiro, porque você é escolhido pelo partido. Depois, tem duas sessões por ano para aprovar só o que manda o partidão. Nunca vi um cubano ser contra. Só dá 612 a zero. Se botar contra esse regime o nosso Flamengo, vai ser campeão.” Bolsonaro brecou. “Ah, aqui tem de falar do Corinthians, não é?” Os sargentos responderam aos gritos de “Palmeiras! Palmeiras!”. A conversa destrambelhada acabou e Bolsonaro ainda assistiu a uma manhã de desfiles e honrarias. Já na rua, cruzou a barreira de sargentos que guardavam a entrada do prédio e foi engolfado por familiares dos formandos. Bolsonaro, ex-capitão do Exército, estava em casa. Na rotina que tem se repetido com o deputado nos últimos meses em aeroportos pelo Brasil, as mãos de seus fãs estão sempre ocupadas, à caça de fotos com o pré-candidato à Presidência da República. Bolsonaro vê seus fãs mais pelas telas dos celulares, sempre posicionadas para selfies. Eles urram “Mito”, “Presidente”. Um apoiador entoou um solitário “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos Bolsonaro presidente do Brasil”. Cada um ali tinha uma missão: “Vai, filho, tira uma foto com ele”.
As redes sociais mudaram a linguagem da política; a derrocada do PT, a ideologia predominante nela. Jair Messias Bolsonaro, de 62 anos, parece ter compreendido isso melhor que seus colegas. O deputado transita, na vida real, entre ideologias e galhofas com a fluidez própria do mundo virtual. Talvez por isso reine nas redes sociais – segundo um levantamento da FSB Comunicação, Bolsonaro é o político mais influente no universo dos likes. Muitos dos que o admiram hoje o conheceram por meio de memes nos últimos dois anos. Entre seus apoiadores, 60% são jovens – como os formandos, que só podem ingressar no curso da Aeronáutica com no máximo 25 anos. De acordo com a consultoria Bites, em março de 2015, quando Bolsonaro tinha apenas 6% de intenção de votos para presidente na pesquisa do Datafolha, ele era seguido por 44 mil pessoas somando Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e Google+. Em abril deste ano, quando se consolidou em segundo lugar na corrida, com 15% das intenções de voto, seus seguidores somavam 5,04 milhões. A catapulta foi sua fala ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro enalteceu o chefe do DOI-Codi, Carlos Alberto Ustra. A página do torturador no Facebook ganhou 3 mil curtidas em 72 horas e Bolsonaro uma exposição midiática sem precedentes. O episódio é um marco na transformação de Bolsonaro em “mito” da direita conservadora. Na EEA, seu filho do meio, Eduardo Bolsonaro, transmitia tudo ao vivo pelo Facebook. “Ele virou um rock star. O pessoal chega, treme, pede para fotografar, agarra. Já é outro nível”, descreve Eduardo, também deputado federal.
Bolsonaro não é apresentador de televisão como o prefeito de São Paulo, João Doria, ou o ex-pré-candidato Luciano Huck. Ele fez o caminho contrário: de deputado inexpressivo passou a folclórico e, finalmente, a personagem da cultura, representante de um comportamento. Bolsonaro personifica com autoridade um dos lados da guerra cultural que o Brasil deflagrou de vez em 2017. Sim, é uma guerra. As batalhas são travadas primordialmente no campo das ideologias – eventualmente, descambam para a violência física. Mas o combate é, em sua origem, intelectual. A mera existência de vozes dissonantes pode sugerir o vigor de uma democracia. O que se testemunhou ao longo do ano, porém, foi uma voz tentando calar a outra. Ninguém ouviu ninguém enquanto todos gritavam – nas redes sociais ou nos megafones na porta de museus ou cinemas. Bolsonaro foi o comandante do Exército conservador. Na linha de frente, ora rivaliza como político na corrida presidencial com Lula, ora faz contraponto a figuras como a cantora Pabllo Vittar (4,8 milhões de seguidores no Facebook  do deputado x 5,6 milhões de seguidores no Instagram da drag queen). Disputa com Lula na política. Rivaliza com artistas nos costumes.
O deputado está no Congresso há quase 30 anos. Formado na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, em 1977, Bolsonaro chegou à patente de capitão. Elegeu-se deputado pela primeira de sete vezes em 1990. Sua base eleitoral eram os militares. Só no primeiro mandato, segundo um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, foram 17 projetos de interesse desse nicho. Nenhum prosperou. Com o tempo, ele variou os temas de suas relevantes propostas. Em uma delas, pleiteia que o nome do finado Enéas Carneiro seja inscrito no Livro dos Heróis da Pátria. Dos 171 Projetos de Lei e propostas de emenda à Constituição de autoria de Bolsonaro, apenas três foram aprovados:  uma extensão da isenção de impostos para itens de informática; a autorização da fosfoetanolamina sintética, a “pílula do câncer” (em que ele é coautor com mais 17 deputados); e a determinação para que os votos sejam impressos (a um custo de R$ 2,5 bilhões em dez anos).
Não é a excelência política de Bolsonaro que conquista eleitores. É ser o cara certo, com o discurso certo, nos moldes certos, para parte expressiva do Brasil. Ele mesmo sacou isso há alguns anos. Em 2011, orientado por assessores, Bolsonaro diversificou sua fala. Escaneou cuidadosamente um movimento que borbulhava nas margens da hegemonia da esquerda em universidades, na imprensa e na cultura. Encontrou um conservadorismo represado, esperando um porta-voz despudorado para verbalizar ideias reacionárias – e talentoso para travesti-las de piadas. Ainda naquele ano, Bolsonaro liderou a grita contra o “kit gay” e a educação sexual nas escolas pretendida pela então presidente, Dilma Rousseff, e seu ministro da Educação, Fernando Haddad. Empolgou-se. Praticou quase diariamente a expressão do absurdo. Tornou-se um craque.
Em abril deste ano, em um evento no Clube Hebraica, no Rio, Bolsonaro caminhava no palco como um comediante em um show de stand-up. Primeiro, disse que afrodescendentes de comunidades quilombolas “não servem nem para procriar”. Rindo, prosseguiu. Contou que tem cinco filhos. “Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher.” O público presente riu. O distante, quando o vídeo vazou, ultrajou-se. “Eu sou brincalhão. Sou processado por fazer brincadeiras. Meu sogro é o Paulo Negão e me chamam de racista. Nós perdemos a alegria de fazer piada no Brasil”, diz Bolsonaro a ÉPOCA. Disfarçar de “brincadeira” suas convicções é um truque para suavizar sua imagem. Mas há pouco que rir de frases como “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos (na ditadura militar), a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso” (1999); “Desaparecidos do Araguaia, quem procura osso é cachorro” (cartaz em seu gabinete em 2009); “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” (2011).
Alguns comediantes logo perceberam o potencial de Bolsonaro. Em um dos episódios do quadro “Mitadas do Bolsonabo”, o humorista Márvio Lúcio, o Carioca do Pânico na TV, ouve de um homem na rua: “Eu estou desconfiado de que meu filho é gay. Como eu faço para descobrir?”. Caracterizado como Bolsonaro – olhos claros, sobrancelhas fartas e expressão encrespada –, Carioca responde em dois fôlegos. “Se fosse o meu filho”, diz o humorista, chutando um anão vestido de militar que está a seu lado, “eu matava”. Gravado numa rua movimentada em São Paulo, o quadro traz Bolsonabo partindo de perguntas dos voluntários para ofender mulheres (“Seu corpo parece o Rio Tietê, tá cheio de pneu”) e rir de políticos opositores (“O que você fez depois que o Jean Wyllys cuspiu em você?”, “Fui ao Butantan pegar antídoto”). “Queima rosca”, “morde fronha”, “veado”, gritam os transeuntes em um dos episódios. Cada vídeo (já são mais de 30) tem entre 1 milhão e 2 milhões de visualizações no YouTube. Bolsonaro não só assiste (e adora) como troca ideias com o próprio Carioca. “Ele tem ganhado muita simpatia com aquele quadro. Não vou negar que me ajuda muito”, diz o deputado.
Bolsonaro diz que parte da população gosta de seu estilo militar linha-dura que não mede o que diz. O deputado segue crescendo nas pesquisas de intenção de voto. Um estudo foi conduzido pela empresa de marketing político Ideia Big Data, a pedido do jornal Valor Econômico, para entender quem são os eleitores de Bolsonaro. Quem pretende votar nele o leva a sério, mas não toma ao pé da letra o que ele diz. Os eleitores não acreditam que Bolsonaro vá espancar um filho se descobrir que ele é gay. Frases como “prisão perpétua” e “morte aos bandidos” tiveram aceitação fácil. Ainda segundo a pesquisa, os eleitores de Bolsonaro se informam principalmente pela internet – não só em sites da imprensa tradicional, mas em páginas sabidamente de fake news. Seus apoiadores não esperam do “mito” conhecimento sobre economia ou um plano de governo bem embasado. Bolsonaro é porta-voz de suas insatisfações e ansiedades diante de um futuro que o deputado e seus soldados pintam como apocalíptico. Um cenário em que artistas defendem a pedofilia e professores doutrinam seus alunos ao “comunismo, sacanagem, maconha, multissexo”, como ele definiu para ÉPOCA o ensino público atual. Multissexo, para ele, é “sexo vale-tudo, sexo à vontade”. Parece que o brasileiro agora é contra.
Espalhar razões para um medo irracional e aproveitar-se dele não é uma estratégia nova na política. Mesmo movimentos de posicionamento liberal em outros setores, como o Movimento Brasil Livre (MBL), acabam aderindo a ideais conservadores nos costumes para ter chances de chegar ao poder. O MBL, dono de uma  página com 2,5 milhões de seguidores no Facebook, usa o espaço para disseminar moralismos. Ajudou a forçar o fechamento da Queermuseu, em Porto Alegre, exposição com 270 obras que exploravam a questão de gênero. Para o MBL, a mostra incentivava a pedofilia e a zoofilia. Na ocasião, Renan Santos, um dos fundadores do MBL, disse a ÉPOCA: “Hoje, o cerne do MBL é político e moral. Temos uma agenda política de defender a escola sem partido e combater essa tara da esquerda para tratar de sexualidade com crianças”. Bolsonaro disse que os autores das obras deveriam ser fuzilados. Poucas semanas depois, outro levante: no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o artista Wagner Schwartz fazia uma performance em que aparecia nu. Uma mãe levou sua filha à apresentação. A menina tocou o pé do artista. Um vídeo com a interação viralizou. Cerca de 70 pessoas, lideradas pelo ex-ator pornô Alexandre Frota, foram para a frente do museu. Eles cantaram o Hino Nacional. E decretaram: “Os pedófilos estão lá dentro”. Bolsonaro tuitou: “Mil Vezes Canalhas!”.
Caetano Veloso foi um dos alvos dos censores virtuais, escudados pelo anonimato e por perfis falsos. Sua mulher e empresária, Paula Lavigne, lançou o #342artes, movimento de artistas em defesa da liberdade de expressão. O MBL reagiu. Resgatou uma entrevista em que Lavigne contava ter tido relações sexuais com o marido quando ela tinha 13 anos e ele 40. O cantor foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter, sob a hashtag #CaetanoPedófilo. O autor da hashtag foi o analista político Flavio Morgenstern, seguidor do filósofo da direita Olavo de Carvalho. Morgenstern descreveu, em um tuíte, a melhor forma de fazer uma “guerra política” sem recursos: massificar um insulto para que o ofendido não tenha como “processar a internet inteira”. Caetano ignorou a estratégia. Processou Morgenstern, Olavo, Alexandre Frota e membros do MBL. Ganhou. Todos foram obrigados a tirar do ar as publicações que o acusavam de pedofilia.
Bolsonaro e sua tropa somam alguns triunfos porque seus adversários nem sempre falam no mesmo volume. Mesmo artistas provocadores como Pabllo Vittar evitam se envolver politicamente. Pabllo, que neste ano ficou em 6o lugar no ranking mundial de artistas com maior número de visualizações no Instagram Stories, acima de artistas como Selena Gomez e Katy Perry, só se manifestou quando um juiz autorizou profissionais da saúde a oferecerem tratamento de “cura gay”. “Não somos doentes”, tuitou a cantora para seus 600 mil seguidores. A ÉPOCA, Vittar disse: “A minha música se posiciona por si só. A minha pessoa. Uma drag queen fazer show para um monte de gente no país que mais mata LGBT... Eu não preciso me posicionar, eu já estou ali”.
As batalhas culturais foram travadas em variados cenários em 2017 – e é difícil cravar um vencedor. Em novembro, manifestantes hostilizaram a filósofa americana Judith Butler, especialista em estudos de gênero, em São Paulo; seis meses antes, estudantes de esquerda do Recife tentaram barrar a exibição do filme O jardim das aflições, sobre Olavo de Carvalho, que já havia sofrido retaliações no festival CinePE. A Globo colocou pela primeira vez um personagem transexual em foco na novela A força do querer. Pabllo Vittar participou do Rock in Rio ao lado da cantora americana Fergie, mas um de seus clipes foi hackeado no YouTube, em que foi postada uma foto de Bolsonaro sem camisa. Sobre o episódio, o deputado se limitou a publicar no Twitter: “Não sei quem é Pabllo Vittar. Boa tarde a todos”.
Um fenômeno parecido de guerra cultural acontece nos Estados Unidos. Lá, há muito mais tempo, com uma polarização ainda mais acentuada e com consequências políticas mais palpáveis. Para começar, entre os americanos já houve um vitorioso: o presidente Donald Trump, que se elegeu turbinado por essa luta. Se na década de 1980 o republicano Ronald Reagan liderou uma cruzada contra as drogas e pela oração nas escolas, Trump reacendeu e inflamou essa guerra, com suas políticas antiaborto e anti-imigração, suas frases de efeito. Veículos alternativos como o site de extrema-direta Breitbart News, formatado pelo ideólogo Steve Bannon, são sua principal plataforma de apoio. Essa extrema-direita, que por lá ficou conhecida como Alt-right, se propõe a uma guerra ideológica, questionando a hegemonia cultural da esquerda e dos liberais. O método escolhido é o humor e o insulto, o de resgatar a moralidade colocando em xeque o politicamente correto. Não é uma estratégia que a esquerda domine. Soa familiar?
Bolsonaro insiste que não é um político tradicional. Propaga que não é corrupto. Há denúncias recentes que o desmentem. A Folha de S.Paulo publicou que Bolsonaro cometeu atos de indisciplina e deslealdade no Exército. O jornal O Globo mostrou como Bolsonaro violou a lei contra o nepotismo ao contratar a ex-mulher e outros parentes na Câmara. Seus vídeos criticando a imprensa repercutem mais que as notícias sobre ele. Na véspera da formatura dos militares em Guaratinguetá, o assessor de imprensa de Bolsonaro, Waldir Ferraz, filmou o deputado comendo um cachorro-quente num carrinho de rua, debaixo de uma leve chuva, vestindo roupas simples, acompanhado da mulher. Ferraz escreveu na legenda: “Nosso presidente e futura primeira-dama desviando dinheiro público num restaurante de luxo do Rio de Janeiro”. A mensagem enviada pelo WhatsApp chegou a simpatizantes de Bolsonaro na Tailândia. A ferramenta, por onde circula uma massa de informação que passa ao largo da cobertura da imprensa e dos analistas políticos, é uma das preferenciais dos fãs de Bolsonaro, que a usam com destreza. “Deputado, existe, então, uma guerra cultural no Brasil?” “Claro, só não vê quem não quer.”
Donald Trump – o tuiteiro em chefe
Entre as 9h48 e as 9h59 do dia 2 de novembro, 2017 se tornou um ano mais calmo. Um funcionário do Twitter, em protesto por ter sido demitido, apagou a conta de Donald Trump. “Desculpe, essa página não existe!”, dizia uma tela azul da rede social de mensagens curtas. “Minha conta de Twitter foi desativada durante 11 minutos por um funcionário desonesto. Eu acho que minhas palavras finalmente devem estar se espalhando e causando algum impacto”, tuitou Trump quando o serviço foi restabelecido. Com mais de 2.500 mensagens no ar desde janeiro, média de sete por dia, Trump cumpriu, de forma inesperada – até para ele –, a promessa de ser um presidente anticonvencional. Foi o tuiteiro em chefe do país mais poderoso do mundo.
O presidente domina o discurso viralizável na rede. Suas mensagens são exaltadas, com exclamações, adjetivos fortes, piadas e palavras que gritam em letras maiúsculas. “Andam dizendo que sou o melhor escritor em 140 caracteres do mundo. Fica fácil quando é divertido”, tuitou Trump em 2012. Humor e exaltação são eficientes para ganhar a atenção do público. Não tanto para tocar um governo. “Achei que seria mais fácil”, admitiu, após 100 dias na Casa Branca.
A eleição de Trump é um exemplo das redes sociais como campo de batalha da guerra política local e internacional. Países como Rússia, China, Coreia do Norte e os próprios Estados Unidos recrutam exércitos de hackers para conquistar corações e mentes em favor de seus interesses. Em depoimento ao Senado sobre interferências na eleição americana, um advogado do Facebook admitiu que 120 páginas falsas, mantidas por russos, publicaram 80 mil mensagens recebidas por 29 milhões de americanos, diretamente – sem contar aqueles que receberam encaminhamentos da publicação original. Ao todo, afirma a empresa, anúncios e posts patrocinados pela Rússia durante a eleição atingiram 126 milhões de americanos – 40% da população. Pelo menos 20% das mensagens sobre a campanha eleitoral americana, no Twitter, foram criadas por robôs. A rede de mensagens curtas disse ter encontrado 2.752 contas ligadas a “fábricas de informação” russas. O Google afirma que encontrou 18 canais no YouTube ligados a uma campanha de desinformação mantida pelo Kremlin. Nessa guerra, Trump é general, Steve Bannon foi seu estrategista e o Twitter é sua principal arma. Bannon é chefe do Breitbart, site de notícias de extrema-direita responsável por manchetes como “O que você preferiria para seus filhos: feminismo ou câncer?”. Tornou-se guru de Trump na campanha e assessor de governo.
Em vez de “drenar o pântano” de Washington, como prometeu, Trump meteu-se num lodaçal. A Justiça investiga se o governo da Rússia e o comitê de campanha do Partido Republicano trabalharam juntos em ações como a captura e o vazamento de e-mails da candidata adversária Hillary Clinton, do Partido Democrata. Logo após a votação, em novembro de 2016, o governo americano expulsou 35 diplomatas russos, acusados de interferir na eleição. Paul Manafort, ex-diretor da candidatura de Trump, foi preso, em outubro, denunciado por crimes como conspiração contra os Estados Unidos. O conselheiro de campanha George Papadopoulos confessou ao FBI que tentou marcar um encontro entre o governo da Rússia e o comitê eleitoral. Assessores do governo Trump negaram qualquer conluio com os russos, mas, depois de demitidos, mudaram o depoimento. Assessor de Segurança Nacional da Casa Branca por breves 24 dias, Michael Flynn afirmou no início de dezembro ter mentido ao FBI sobre seus contatos. A confissão é parte de um acordo judicial de colaboração. Trump demitiu James Comey, diretor do FBI encarregado de parte das investigações. “Espero que não haja ‘fitas’ de nossas conversas antes que ele comece a vazar para a imprensa!”, tuitou em maio. Em depoimento, Comey acusou o presidente de “querer obter algo” em troca de mantê-lo no cargo. Trump tornou-se suspeito de obstrução da Justiça. Essa mesma acusação levou à abertura de processos de impeachment contra o republicano Richard Nixon, em 1974, e contra o democrata Bill Clinton, em 1998. Nixon renunciou antes de ser impedido. Clinton foi salvo pelo Senado. Trump, por enquanto, tem no Parlamento votos suficientes para escapar. As eleições para o Congresso no meio do ano que vem, contudo, podem complicar sua situação. Basta os republicanos perderem a maioria. Nixon e Clinton enfrentaram problemas com a Justiça quando estavam em segundo mandato, já desgastados. No primeiro ano de administração, apenas Trump viveu tamanho atoleiro.
Trump age como se ainda estivesse em campanha. Tem, pendurado na parede da Casa Branca, um mapa dos Estados Unidos dividido entre 30 distritos eleitorais pintados de vermelho (ganhos por seu Partido Republicano na eleição presidencial) e 21 pintados de azul (ganhos pelo Partido Democrata). A mancha vermelha ocupa o centro do mapa – os estados com tradição industrial, na região conhecida como “cinturão da ferrugem”. “Eu venci no voto popular, se você deduzir os milhões de pessoas que votaram ilegalmente”, disse pelo Twitter, ainda em 2016, e repete até hoje. É uma mentira. Hillary Clinton conquistou 48,5% dos eleitores, e ele 46,4%.
Trump não teve o apoio da maioria da população nem parece buscar isso. Governa para os seus. Casado pela terceira vez e dono de cassinos, ofereceu concessões à “maioria moral” descoberta como força política pelo presidente Ronald Reagan nos anos 1980. O eleitor preocupado com questões morais – aborto e homossexualidade, sobretudo – é desde então um dos sustentáculos do Partido Republicano. Para a “maioria moral”, Trump cumpriu sua principal promessa – e maior medo de seus adversários. Nomeou Neil Gorsuch para a vaga de Antonin Scalia na Suprema Corte americana. Nomear um juiz da Suprema Corte é uma das principais atribuições políticas de um presidente dos Estados Unidos. Os nove juízes têm mandato vitalício e, em última instância, decidem o que a Constituição americana quer dizer. A marca que um presidente deixa na Suprema Corte vai muito além de seus dois mandatos possíveis. Os democratas esperavam substituir Scalia, um dos mais consistentes conservadores da Corte, por um progressista apontado por Obama. A nomeação ficou 293 dias diante do Senado – que, de maioria republicana, adiou a votação. Trump apontou Gorsuch, um claro conservador, que foi rapidamente aprovado. Trump é o inimigo do discurso politicamente correto, representado de modo quase caricatural por Hillary Clinton e pelo ex-presidente Barack Obama. “Fiquem avisados de que o governo dos Estados Unidos não aceitará ou permitirá indivíduos transgêneros desempenhando qualquer atividade nas Forças Armadas”, tuitou em julho, ao derrubar uma bandeira do governo Obama. Quando a retirada de uma estátua do general Lee (herói do lado escravagista na Guerra Civil Americana) deflagrou uma batalha campal em Charlottesville, no estado da Virgínia, Trump culpou “os dois lados”. Pouco importou se um lado empunhava tochas e bandeiras com a suástica nazista. Pouco importou se o outro lado empunhava cartazes em favor do amor e da tolerância racial. Enquanto políticos de todos os matizes em boa parte do mundo fazem o possível e o impossível para não associar, ao menos retoricamente, terrorismo e islã, Trump, sempre de olho em sua plateia, fez o máximo de barulho possível ao proibir turistas de sete países de maioria islâmica, em janeiro. “Precisamos BANIR A VIAGEM de certos PAÍSES PERIGOSOS, não algum termo politicamente correto que não ajudará a proteger nosso povo!”, tuitou. Em dezembro, uma terceira versão do decreto foi autorizada pela Suprema Corte – com apoio de Gorsuch.
As mãos de Trump foram mais produtivas para prometer projetos nas redes sociais do que para assiná-los na forma de lei – algo que requer paciência e argumentos para convencer parlamentares. Nos Estados Unidos, o presidente tem menos autonomia para decidir sozinho do que, por exemplo, no Brasil. A proposta de derrubar o plano de saúde pública Obamacare foi derrotada no Congresso, apesar de os republicanos terem maioria na Casa. “O Obamacare é um total e completo desastre – e está implodindo rápido!”, tuitou, em vão, para convencer os parlamentares. O tão prometido muro na fronteira com o México não avançou um tijolo. “A imprensa desonesta não divulga que qualquer dinheiro gasto por nós (a fim de dar agilidade) na construção do Grande Muro será pago de volta pelo México depois”, afirmou. Trump limitou-se à manutenção de trechos antigos e a uma constrangedora conversa com o presidente do México, Peña Nieto, a quem pediu cumplicidade com sua bravata. “Você não pode dizer isso à imprensa”, disse Trump, por telefone, segundo o jornal americano The Washington Post. “Em vez de dizer ‘não vamos pagar’, poderia dizer ‘vamos solucionar’”, propôs. Sua única vitória de peso no Congresso foi a aprovação, em dezembro, de uma lei de reforma tributária que corta impostos de grandes empresas e das famílias mais ricas. É a mudança mais profunda no pagamento de impostos desde 1986. “Estamos entregando um ALÍVIO HISTÓRICO DE IMPOSTOS ao povo americano”, tuitou Trump, ao festejar a aprovação do projeto.
Fora de casa, Trump tentou pôr em prática sua visão do America First e desfazer a diplomacia de Barack Obama. Em sua primeira semana no poder, descartou a participação dos EUA na Parceria Trans-Pacífica, acordo de comércio entre 12 países da bacia do Pacífico. A parceria era o principal legado de Obama em termos comerciais. Em junho, o presidente anunciou que os EUA se retirarão do Acordo de Paris, que tinha sido fortemente patrocinado por Obama. Pelas regras do acordo, no entanto, uma retirada efetiva do compromisso de reduzir emissões de carbono já assinado só poderá ocorrer em 2020. A alegação é que o tratado é prejudicial à economia americana. Obama patrocinou um acordo nuclear com o Irã. Trump acusou Teerã de descumprir o acordo e delegou ao Congresso aprovar sanções – o que, por ora, não ocorreu. Obama restabeleceu relações diplomáticas com Cuba e exortou o Parlamento a derrubar décadas de bloqueio econômico. Trump expulsou diplomatas cubanos e recrudesceu as relações. Obama se manteve distante de Israel, a ponto de deixar passar no Conselho de Segurança da ONU uma resolução contra assentamentos israelenses na Palestina. Trump anunciou a transferência da embaixada dos Estados Unidos em Israel para Jerusalém, atendendo a uma demanda histórica dos israelenses. Trump anunciou a saída do Acordo de Paris – costurado por anos com a liderança da China e dos próprios americanos. Em vez de liderar uma debandada, isolou-se. Não foi seguido sequer por estados americanos como a Califórnia. Deixou a liderança do combate ao aquecimento global para o chinês Xi Jinping. Obama tentava lidar com a China com parcerias. Trump parece preferir a abordagem tradicional de manter o domínio geopolítico sobre o Pacífico, conquistado na Segunda Guerra, e mantido graças a alianças militares com Japão, Coréia do Sul e Taiwan. 
Ao levar seu temperamento agressivo para a diplomacia, Trump ajudou a corroer a sua autoridade e a dos Estados Unidos. Ao discutir com o líder da Coreia do Norte Kim Jong-Un pelas redes sociais, Trump – escolhido democraticamente para liderar a maior economia e o maior arsenal nuclear do mundo – desceu ao nível do pequeno ditador de um país miserável. Pelo twitter, em janeiro, disse que outro teste de mísseis da Coreia do Norte “Não vai acontecer!”. Mas aconteceu. Várias vezes. Em seu primeiro discurso na ONU – cuja fundação foi uma vitória da diplomacia americana –, Trump disse que iria “destruir totalmente” a Coreia do Norte. O presidente bate boca até com aqueles que escolheu, como o secretário de Estado, Rex Tillerson, porta-voz do país no exterior. Ao ouvir de um jornalista que Tillerson o chamara de idiota, Trump pôs em questão mais uma vez sua autoridade: “Se ele disse isso, acho que teremos de comparar testes de QI. Vou lher dizer quem vai vencer”.
Apesar de estar em permanente campanha, Trump é o presidente americano com menor taxa de aprovação, no primeiro ano de gestão, desde o início da série histórica, em 1945. Apenas 37% da população gosta de seu governo, segundo uma cesta de pesquisas de opinião pública organizada pelo site fivethirtyeight.com. Curiosamente, a insatisfação ocorre num período de prosperidade para os americanos. A economia vai bem para patrões e funcionários. Na bolsa de valores, o índice S&P500 registra valorização recorde e acumula 104 meses seguidos de alta (92 deles ainda na gestão Obama). O número de desempregados em outubro – 222 mil – é o menor registrado no país desde 1973. Outros presidentes, como Obama e Clinton, também tiveram dificuldades para aprovar projetos no primeiro ano. A principal diferença entre Trump e seus antecessores é na imagem e no método, não nas ações reais. A fanfarronice nas promessas e a bagunça na Casa Branca passaram a impressão de um governo menos eficiente do que foi até agora.
Trump perdeu 15 altos funcionários ao longo do ano. Disposto a passar longe dos burocratas profissionais de Washington e esnobado por especialistas de prestígio, Trump cercou-se de conselheiros inexperientes, como sua filha e seu genro. Anthony Scaramucci foi demitido após onze dias como diretor de comunicações da Casa Branca. Teve tempo de dar uma entrevista em que chamou o chefe de gabinete Reince Priebus de “esquizofrênico de m..., um paranoico” e dizer, a respeito do estrategista-chefe, “não sou Steve Bannon, não estou tentando chupar meu próprio p...”. Priebus caiu. Seu sucessor, o ex-general John Kelly, derrubou Scaramucci. Semanas depois, conseguiu também a demissão do estrategista-chefe da Casa Branca, Steve Bannon. “Não tem caos na Casa Branca!”, tuitou Trump, numa daquelas negações que, ao se fazerem necessárias, valem como afirmação.
A chegada de John Kelly à chefia de gabinete, em julho, parece marcar uma lenta mudança de tom para Trump e seu governo. Os voluntariosos assessores de campanha que ascenderam à Casa Branca perderam espaço para três militares: além de Kelly, o conselheiro de segurança nacional Herbert McMaster e o secretário de Defesa Jim Mattis. Comandante da invasão americana ao Iraque, em 2003, Kelly tenta organizar o caos. O general limitou a duração de reuniões e a quantidade de pessoas que entram no Salão Oval. Ao estabelecer um horário de expediente na Casa Branca (a partir de 9h ou 9h30), diminuiu o tempo que o presidente dedicava a metralhar suas reações pelo Twitter. Trump acorda às 5h30 e se informa de duas maneiras: pelo canal de Fox News e ao ler notícias da internet impressas em folhas de papel. A papelada encolheu e, nela, os textos radicais do Breitbart ficaram mais raros. Kelly foi convocado para fazer, em nome da ordem, aquilo que o ex-funcionário do Twitter fez por rebeldia quando excluiu, por 11 minutos, a conta @realDonaldTrump. “Agora eu tenho tempo para pensar”, disse Trump.
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